quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Minha contribuição

O texto que se segue é um pouco extenso, entretanto considero uma leitura fundamental para qualquer pessoa que se diz socialista ou defensora dos direitos LGBTTT.

Se você não se enquadra em nenhuma das opções acima, mas é contra guerras, exploração, miséria, fome, degradação do meio ambiente, racismo, sexismo, homofobia, violência e qualquer tipo de opressão... esse também é um ótimo texto pra você.

Boa leitura.

Gays, Lésbicas e o Socialismo

Por Noel Hallifax


As paradas do “orgulho gay” vêm se consolidado como um evento político importante em todos os cantos do mundo. São manifestações que tiveram início há 30 anos, como atos de afirmação da sexualidade gay e lésbica, chamando a atenção para um tema que ainda é considerado tabu e tratado com desprezo e preconceito. Além das “Paradas do Orgulho Gay”, a realização de outros tipos de manifestação, a realização de campanhas tem sido importantes na luta contra a homofobia. Cada vez mais pessoas deixam de ver a homossexualidade como uma “aberração” ou “doença”, e leis que reconhecem a união entre pessoas do mesmo sexo têm se tornado cada vez mais comuns. Apesar disso, as conquistas ainda representam pouquíssimo diante dos graves problemas que gays, lésbicas, bissexuais e travestis enfrentam: expondo-se cotidianamente não só a atitudes preconceituosas, chacotas, perseguições e discriminação, mas à violência física e repressão policial.

Alguns problemas contribuem para esse avanço limitado. É interessante compararmos com outros movimentos, como o das mulheres, para que se tenha uma idéia mais clara. A luta pelos direitos das mulheres é antiga, e ao longo do tempo ela extrapolou os limites dos movimentos feministas, para se incorporar às lutas dos movimentos sociais e as plataformas de partidos políticos. Hoje em dia a maioria dos sindicatos possui comissões de mulheres, e muitas organizações, como a CUT, adotam o sistema de cotas para mulheres. E aqui não importa o juízo que se tenha sobre o sistema de cotas – o fundamental é o fato de que a luta das mulheres ganhou amplitude. Do mesmo modo, os debates e discussões sobre os problemas referentes Às mulheres e seus direitos, estão amplamente disseminados. É obvio que apesar disso essa luta está distante de ter alcançado ume estágio condizente com as suas necessidades. Mas, dentre os movimentos dos setores oprimidos, é o que se encontra em um grau mais avançado de organização, debate e mobilização. A situação dos movimentos contra a discriminação racial é bastante diferente. Embora nos últimos anos a questão racial venha conquistando um espaço cada vez maior na agenda política, a luta contra o racismo no Brasil ainda engatinha.

O grau de organização e luta dos gays, lésbicas e travestis é, infelizmente, baixíssimo. Os debates sobre a homofobia, os direitos dos gays e lésbicas ainda estão distantes dos movimentos sociais e das organizações da chamada “sociedade civil”. Pelo contrario, mesmo nesses setores, pode-se contatar a disseminação do preconceito e a subestimação dessa luta, a qual é tão importante quanto as lutas das mulheres, negros e outras vítimas de opressão.

Em grande medida, isso reflete a falta de compreensão do próprio problema da opressão. Em geral, há uma tendência a ver a de “atitude”, de “conscientização”, etc. Embora não se possa negar a importância das campanhas de esclarecimento, das ações judiciais movidas por vítimas de discriminação, dos lobbies organizados por entidades gays, a opressão não pode ser reduzida a um problema de “atitude”, de “idéias” ou comportamento. Da mesma forma que o machismo e o racismo, a opressão está enraizada em um sistema que necessita da opressão e a reproduz constantemente em suas variadas formas. E qualquer combate conseqüente contra a opressão precisa ser radical, isto é, necessita ir à raiz do problema.

A publicação deste caderno pretende ser uma contribuição a esse debate. Embora sua elaboração date de 1988, os seus argumentos são atuais e proporcionam elementos importantes para se compreender as bases materiais reais da opressão gay e para se discutir os caminhos possíveis para a sua superação. Está é, afinal, uma luta não só dos homossexuais, lésbicas, travestis e bissexuais, mas de todos nós que lutamos por uma sociedade igualitária e fraterna.

Qualquer pessoa que defenda a libertação gay enfrenta o velho clichê de que a homossexualidade é contrária à natureza humana. Essa crença em uma natureza humana estática, determinada pela nossa estrutura genética e os nossos instintos, é o mito mais popular utilizado para justificar a opressão sobre os homossexuais.

A primeira questão que deve ser enfrentada é a idéia de que lésbicas ou gays são “pervertidos”, “desviados”, “anormais”. Mesmo uma pesquisa superficial de diferentes sociedades mostra enormes variações no que é considerado “normal”. A sexualidade não é biologicamente definida, mas socialmente determinada. E a sua definição tem sofrido enormes mudanças através da história.

Muitas sociedades consideravam a homossexualidade “normal”. O exemplo mais conhecido é a Grécia Antiga. O amor entre os homens era idealizado na arte e na poesia grega. A mitologia grega está cheia de história de amor de gays e lésbicas. A história de Adônis e Narciso, por exemplo, fala de um deus que cai na luxúria e persegue belos jovens. O culto a Adônis dispunha de templos e festivais dedicados a celebrar e promover relações gays. Na sociedade grega um homem que se apaixonasse e tivesse relações sexuais com outro homem era visto como um ser perfeitamente normal.

Isso não deve levar-nos a crer que a sociedade grega era um paraíso sem opressão. Era uma sociedade baseada na escravidão, na qual a grande maioria da população era formada por escravos que eram propriedade de cidadãos livres. Os escravos não possuíam nenhum direito, eram criados como diferentes raças de animais para diferentes funções – escravos robustos para trabalhos pesados, outros para trabalhos domésticos, e assim por diante.

Além do mais, as mulheres possuíam um status tão baixo que os homens pensavam que era quase impossível para um homem e uma mulher terem uma relação amorosa de igual para igual – as mulheres serviam para cuidar da casa e das crianças, e o amor era destinado aos rapazes. Era uma sociedade extremamente opressiva. Na cidade estado de Esparta, o amor dentre jovens e homens era um aspecto permanente e importante em seu exército. Um guerreiro treinava um jovem na arte da guerra, num aprendizado longo e árduo. A relação entre o guerreiro e o seu aprendiz era próxima e vital, e sua importância era tão grande que os planos de batalha do exercito espartano eram feitos com base nessa relação.

A casta guerreira do Japão feudal – os samurais – nutria idéias semelhantes às dos espartanos, refletidas em poemas e historias de amor homossexual.

Assim, não há nada de pervertido no amor gay. A sua existência pode ser constatada em quase todas as sociedades, mesmo naquelas que o proíbem veementemente. O amor entre pessoas do mesmo sexo é um aspecto comum da sexualidade humana. O que precisa ser explicado é porque em algumas sociedades esse amor é vítima de opressão.

Os utópicos

O primeiro movimento socialista na Grã-Bretanha – dos socialistas utópicos – data do final do século 18 ate a primeira metade do século 19. Esse movimento coincidiu com o movimento cartista, primeiro movimento operário da Grã-Bretanha, sobre o qual tiveram uma influencia significativa.

Os socialistas utópicos não só tinham consciência da opressão sexual como também colocavam esta questão no centro de sua política. Enfatizavam em particular a necessidade de as mulheres terem liberdade de desfrutar a sua sexualidade. Defendiam firmemente a libertação sexual, embora não tivessem uma idéia clara das causas da opressão sexual. A explicação mais popular era a da ignorância: as mentes das pessoas estavam cheias de idéias erradas, implantadas pela Igreja. A batalha contra a opressão sexual era, portanto, uma batalha contra idéias equivocadas.

Isso os levou a suas estratégias complementares e igualmente desfocadas. A primeira era apelar a capitalistas esclarecidos para apoiá-los. Como as suas idéias estavam baseadas na razão, a força do argumento seria suficiente para conseguir o apoio de capitalistas influentes. Não surpreende que tenham atraído poucos colaboradores.

Outros viram a saída na “propaganda dos atos” – vivendo no ‘aqui e agora’ as idéias de uma sociedade futura. Isso levou muitas pessoas a estabelecerem comunidades e outras experiências de vida não monogâmicas. A grande maioria dessas idéias falhou. O seu maior fracasso foi não conseguir oferecer nenhuma alternativa à família para a grande maioria dos trabalhadores. Há muito mais na opressão sexual do que idéias equivocadas, e as restrições materiais que a maioria dos trabalhadores sofre não podem ser simplesmente eliminadas pela força na nossa vontade.

As raízes da opressão

Ao mesmo tempo em que os socialistas utópicos tinham idéias interessantes para escapar individualmente da opressão sexual, eles não podiam explicar porque essa opressão era predominante, nem como combatê-la. Apenas quando Engels escreveu A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado em 1884 tornou-se possível explicar cientificamente as raízes da opressão sexual. E somente então tornou-se possível ver como poderia ser eliminada.

Engels viu que a base da opressão das mulheres e do sexismo era a família, o núcleo básico da sociedade que estruturava e determinava a posição desigual das mulheres. Analisando diferentes formas de família em diferentes tipos de sociedade, ele mostrou que a família havia mudado fundamentalmente de um estágio de sociedade para outro. A monogamia não era um instinto “natural” e “biológico”, mas um produto da forma como a sociedade estava organizada. Utilizando o trabalho de antropólogos, ele buscou as raízes da família no surgimento das classes na sociedade humana.

Conforme as sociedades passaram a produzir mais do que o necessário para o próprio sustento, o surgimento da propriedade privada acarretou uma divisão da sociedade em classes desiguais. Uma minoria possuía a maior parte da riqueza da sociedade enquanto a maioria possuía pouco ou nada. O surgimento dos direitos de propriedade também trouxe uma mudança fundamental nas relações entre homens e mulheres. A divisão de trabalho anterior (com as mulheres como cultivadoras e os homens como caçadores e pastores) conferia uma posição elevada às mulheres, uma vez que, para sobreviver, a sociedade dependia primeiramente dos alimentos que elas produziam. A nova divisão tornou-se profundamente desigual, já que a minoria que formava a classe dos proprietários era formada praticamente por homens. O casamento torna-se monogâmico porque os homens que controlavam as propriedades buscavam transmiti-las aos seus filhos, e para isso eles precisavam saber quem eram eles.

Para Engels, o fim da linhagem materna (o reconhecimento da descendência através da mãe) marcou a “derrota histórica do sexo feminino”. Ele afirmou que: “O primeiro antagonismo de classes que aparece na historia coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre homens e mulheres no casamento monogâmico, e a primeira opressão de classe coincide com a opressão do sexo feminino pelo masculino” (F. Engels A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado).

A propriedade privada também deu lugar às primeiras formas primitivas do estado enquanto um órgão de coerção que assegurava o domínio da minoria sobre a maioria despossuída, ao qual foi incorporado um conjunto de estruturas legais reforçando a posição subalterna das mulheres.

Atualmente, sabe-se muito mais sobre as sociedades primitivas do que na época de Engels, e reconhece-se que muitas das suas descrições dessas sociedades são erradas. O processo pelo qual a sociedade de classes foi formada foi muito mais desigual e complexo do que pensava Engels. Muitos dos detalhes de sua obra foram tomados de sociedades que não eram típicas. Apesar dessas debilidades, o ponto central de sua analise – de que a família e a opressão das mulheres eram produtos da sociedade de classes – permanece válido.

O objetivo de Engels era mostrar que a opressão sexual não era uma característica permanente e imutável da historia humana, mas havia se desenvolvido em resposta às mudanças na forma em que a sociedade estava organizada. O que os seres humanos haviam criado, os serem humanos podiam destruir. A opressão sexual poderia ser erradicada, mas somente mudando a organização da própria sociedade. A família está tão profundamente enraizada na sociedade de classes que ela só pode ser desarraigada pela destruição da sociedade de classes – pela vitória do socialismo.
Para entendermos como a família e a opressão feminina produziram a opressão gay é necessário que vejamos como a família transformou-se fundamentalmente sob o capitalismo. O capitalismo é, dentro todas as formas de sociedade de classes, a mais dinâmica e revolucionaria, uma sociedade que só pode progredir mudando e expandindo constantemente a sua base econômica. Como Marx e Engels escreveram em O Manifesto Comunista:

“A constante revolução da produção, a perturbação ininterrupta de todas as condições sociais, a incerteza e a agitação perpétuas distinguem a época burguesa de todas as anteriores. Todas as relações fixas, com o seu trem de preconceitos antigos e veneráveis, são varridas, todas as recém-formadas se tornam antiquadas antes que possam se ossificar.”

O que é verdadeiro para a sociedade como um todo também o é para a família. O processo inicial de industrialização destroçou a família operária tal como existia, destruindo a sua base como uma unidade de produção. Mulheres, homens e crianças, foram todos lançados nos novos moinhos e fábricas, não como membros de uma família, mas como trabalhadores igualmente “livres”. Ainda na década de 1840, a maioria dos trabalhadores das fábricas na Grã-Bretanha eram mulheres e crianças. As horríveis condições de vida e de trabalho que sofreram, destruíram qualquer aparência de uma vida familiar normal. E o acesso das mulheres a meios de sobrevivência independentes permitiu a muitas delas escaparem da necessidade de se casarem. Isso levou muitos, inclusive Marx e Engels, a prever a morte da família operária.

Na realidade, a família não só sobreviveu, mas floresceu – mas numa forma muito diferente. O capitalismo dependia de uma oferta ininterrupta de mão-de-obra, e aqueles que dirigiam o sistema passaram a ver cada vez mais a família como sendo o melhor meio de assegurar-lhes isso praticamente sem qualquer custo para eles próprios. A partir de meados do século XIX, houve tentativas conscientes de reconstruir uma vida familiar estável para as classes trabalhadoras. Em parte, isso implicou na gradual exclusão das mulheres e crianças de certas áreas de trabalho e no pagamento de um “salário-família” para alguns trabalhadores. As mulheres foram excluídas, em particular, daquelas industrias que colocavam em risco a sua capacidade de gerar filhos.

A família era necessária, em primeiro lugar, para reproduzir diariamente a capacidade dos trabalhadores para o trabalho – para alimentá-los, vesti-los e abrigá-los para que pudessem continuar a produzir mais-valia para os capitalistas. Mais importante, era também necessária como um meio para produzir futuras gerações de trabalhadores. Isso essência do núcleo familiar significava não só a produção física de crianças, mas também o seu treinamento social e ideológico, para produzir uma força de trabalho saudável, educada e submissão. Tal era o ideal da vida familiar.

Na prática, esse ideal quase nunca era realizado plenamente. Muitos capitalistas não pagavam um salário familiar adequado, e muitas mulheres continuavam a trabalhar em tempo integral ou parcial. Mas uma ampla gama de controles sociais, econômicos e ideológicos foram usados para impor a nova família à classe trabalhadora. Isso funcionou porque muitos trabalhadores, homens e mulheres, saudaram essa imposição. A família nuclear pareceu ser a única alternativa ao pesadelo de todos os membros da família trabalharem 12 horas por dia em troca de uma miséria e em condições brutalmente insalubres e perigosas.

Por fim, a família proporcionou aos seus membros a ilusão de terem um grau de controle sobre uma parte de suas vidas, um paraíso dentro de um mundo cruel. Contudo o restabelecimento da família nuclear assegurou a continuidade da opressão das mulheres.

A família tornou-se assim uma área de vida “privada” separada da esfera publica da produção, mas uma área ordenada e controlada pelo capitalismo. Na medida em que a família nuclear se tornou cada vez mais importante para o capitalismo, também tornou-se cada ver mais importante apresentá-la como sendo a única forma possível de via e assegurar que as divisões sexuais que isso acarretava fossem passadas às futuras gerações de trabalhadores. A família, em outras palavras, tornou-se um meio não só de controle social sobre os trabalhadores, mas também um controle ideológico.

São esses controles que são colocados em xeque pela simples existência de gays e lésbicas. A sexualidade gay desafia a idéia da família monogâmica como o único modo de vida possível – também desafia a idéia de que o sexo seja apenas para a reprodução. A sexualidade tornou-se não uma questão privada regulada pelas tradições e preconceitos da comunidade, como havia sido nas sociedades pré-capitalistas, mas um problema publico para o Estado regular e restringir.

Essa restrição tornou-se duplamente importante porque o desenvolvimento do capitalismo também criou as condições para formas muito mais amplas de expressão da sexualidade – pelo menos para uma minoria. A destruição das velhas comunidades de vilarejos, e com isso a quebra da fortaleza da Igreja, a possibilidade dos jovens escaparem da família pelo acesso ao trabalho assalariado e o anonimato das grandes cidades – tudo isso ajudou a criar as condições nas quais se tornou muito mais possível o desenvolvimento e o florescimento da sexualidade gay.

A resposta do Estado foi reprimir qualquer sexualidade “desviada” através de uma serie de leis repressivas e condenações judiciais exemplares designadas para forçar os gays e lésbicas a permanecerem nos porões da sociedade. A sociedade passou a definir o que era um comportamento sexual “normal”, ao mesmo tempo em que criou o “homossexual” como um tipo social. São sempre os opressores que definem os oprimidos, embora freqüentemente os oprimidos assumam os rótulos e símbolos de sua opressão como sinas de força e orgulho.

A opressão gay existiu em sociedades pré-capitalistas com um grau altamente variado de repressão e selvageria. Outras aceitaram o amor gay ao lado da heterossexualidade. Foi somente com o advento do capitalismo que a opressa gay tornou-se sistematizada como uma defesa necessária da família nuclear. Mas o capitalismo também criou possibilidades muito maiores do qualquer sociedade anterior para as pessoas realizarem e viverem suas sexualidades. Pela primeira vez na historia era possível lutar pela libertação gay.

A tradição Marxista

A tradição marxista não começou e terminou com Engels. Desde o século 19 e através do século 20, houve uma tradição de luta e organização contra a opressão sexual, incluindo a opressa gay. Foi uma tradição que terminou em 1934, esquecida ou deliberadamente apagada da historia ate a sua redescoberta no final da década de 60. Essa falsificação deliberada da historia foi em grande medida a obra dos Partidos Comunistas oficiais. Hoje, essa mesma tradição é em grande medida ignorada pelo movimento gay. Muitos socialistas e a maior parte do movimento gay desconhecem, portanto, a sua própria história.

A Segunda Internacional

A II Internacional foi uma organização operaria de massas. Dentro os partidos que a compunham, o maior partido, e o mais importante era o Partido Social-Democrata (SPD) Alemão. O SPD aglutinava milhões de trabalhadores, influenciando-os não só politicamente, mas também a sua vida social e cultural. O partido organizava tavernas, corais, ciclismo e outras diversas atividades. Era como uma sociedade dentro da sociedade. Ilegal por muitos anos, o SPD foi o maior e mais impressionante movimento socialista anterior à Revolução Russa.

Nas décadas de 1880 e 1890, foi o centro das idéias e atividades socialistas. Com Engels como seu guia ideológico e critico, e contanto com dirigentes do porte de Rosa Luxemburgo, Karl Liebcknecht, August Bebel e Karl Kautsky – chamado então de o “Para do Marxismo” –, o SPD proclamava-se marxista e revolucionário.

Mas, por baixo da superfície, a realidade não era tão simples assim. O SPD era um partido de massas, mas era também um partido confuso e sem unidade. Dentro dele existiam diferentes correntes, muitas das quais não era marxistas ou eram ate mesmo anti-marxistas e que se opunham ao socialismo revolucionário. Eduard Bernstein foi o mais famoso teórico que defendia a evolução gradual do capitalismo através de reformas, em contraposição à mudança revolucionária.

Mais importante era o fato de que o SPD, embora usasse palavreado marxista, na pratica atuava como um partido reformista. Seus deputados, dirigentes sindicais e as inumeráveis organizações de que dispunha foram criados dentro da estrutura do capitalismo, na realidade, baseavam-se nela. Na Alemanha, com um baixo nível de luta de classes, a diferença entre a classe trabalhadora e o partido não era clara na cabeça dos membros do SPD. O socialismo para eles significava, na pratica, conquistar o estado, com o partido conquistando gradualmente a hegemonia por dentro da sociedade. Em outras palavras, o partido substituía a classe trabalhadora enquanto agente da mudança social.

Mas, do mesmo modo como o socialismo revolucionário, a tradição de luta pela liberdade sexual também fazia parte do SPD. Da década de 188 até os anos 30 do século passado, a luta pela libertação sexual era parte do movimento socialista. Uma historia da luta contra a opressão sexual nesse período só pode ser entendida como parte da história mais abrangente do próprio movimento socialista. E, assim como o SPD era o centro da II Internacional, também era o centro da política sexual.

A homossexualidade era ilegal na Prússia nos anos de 1860 e mais tarde no código penal da Alemanha em 1871 – no famoso parágrafo 175. Já nos anos 1860, os socialistas alemães tiveram que lutar contra a opressão gay. Em 1861, um jovem chamado J. B. Von Schweitzer foi preso e julgado por homossexualismo em Mannheim. Ele foi defendido por Ferdinand Lassale, um dos primeiros dirigentes socialistas da Alemanha, e em 1863 ingressou a Associação Universal dos Trabalhadores, vindo a tornar-se um dos seus dirigentes.

Em 1897, Magnus Hirschfeld fundou o Comitê Humanitário Cientifico. O Comitê colocou-se a tarefa de legalizar o homossexualismo, esclarecer a opinião publica sobre o assunto e “despertar o interesse no próprio homossexual para a luta por seus direitos”. O Comitê foi o primeiro grupo de reforma gay. Como parte de sua campanha foi lançada uma petição pela revogação do parágrafo 175.

O SPD teve um papel fundamental nessa campanha. August Bebel encaminhou a petição para o Reichstag – o parlamento alemão – no dia 13 de junho de 1898 e reivindicou a revogação da lei. Nas assinaturas de apoio à petição constavam as dos mais proeminentes lideres do SPD, entre eles Eduard Bernstein, Karl Kautsky e Käthe Köllwitz.

Mas a questão mais importante que os socialistas enfrentaram na luta contra a opressão gay foi o julgamento do escritor inglês Oscar Wilde em 1895. O julgamento tornou-se uma desculpa para uma ampla campanha anti-gay na Grã-Bretanha. Bernard Shaw tentou encaminhar uma petição, mas não conseguiu nenhuma assinatura do Partido Liberal.

Na Alemanha, o jornal do SPD, Dio Neue Zeit, defendeu Oscar Wilde. Bernstein, em um longo artigo publicado em duas partes em 1895, apresentou uma critica materialista da moralidade e sublinhou a obrigação dos socialistas de se colocarem enquanto direção nas questões sexuais a partir de uma “perspectiva científica”. Ele argumentou contra as noções de sexualidade “natural” e “não natural”:

“Antigamente os romanos, gregos, egípcios e vários povos asiáticos cultivavam a gratificação homossexual (...) o intercurso entre sexos iguais é tão antigo e tão disseminado que não podemos afirmar com certeza que algum estágio da cultura humana esteve livre desse fenômeno (...) atitudes morais são fenômenos históricos” [citado em John Lauritson ans Dvid Thorsad, The Early Homossexual Rights: Movement 1864-1935]

A campanha pela petição levou a um debate no Reichstag em 1905, com SPD de um lado e todos os outros partidos de outro. Adolph Thiele dirigiu o SPD no debate e o jornal do partido, Vorwärts, deu ampla cobertura à campanha.
Assim, o SPD tinha uma atitude correta opressão gay. Mas havia também muita teórica sobre o assunto. Os artigos de Bernstein era os melhores que o partido havia produzido sobre a questão, atacando A idéia de uma natureza humana estática. Mas as teorias dos reformadores sexuais tinham muitas debilidades e confusões.

Magnus Hirschfeld foi um dos mais influentes, tendo cumprido um papel central nas campanhas e atividades desde os anos 1890 até a década de 1930. Ele afirmava que lésbicas e gays constituíam um “terceiro sexo” – a meio caminho entre homem e mulher, física e mentalmente diferentes dos outros dois sexos. Na realidade, ele acreditava numa versão liberal de determinismo biológico.

As pessoas nasceriam como homens, mulheres e do terceiro sexo, cada sexo tendo características físicas e mentais pré determinadas. A sociedade, afirmava ele, deveria aceitar o terceiro sexo, uma vez que era tão natural como os outros dois sexos. No fundo, as idéias de Hirschfeld era reacionárias, e foram mais tarde deturpadas e utilizadas pelos nazistas para justificar a eliminação de lésbicas e gays, tidos como “desvios genéticos”.

Na Grã-Bretanha, a esquerda era muito mais fraca que na Alemanha. Os partidos “marxistas” eram pequenos e reacionários em muitas questões, incluindo a política sexual. Dessa forma, apenas indivíduos isolados lutaram por reformas nesse campo, dentro os quais o mais importante foi Edward Carpenter.

A visão de Carpenter do socialismo era a de uma nova era da democracia, camaradagem e liberdade sexual. Em 1894, ele fez uma palestra sobre “amor homogênico”, mais tarde publicado pela Manchester Labour Press. O pânico homofóbico que varreu a Grã-Bretanha após o julgamento de Wilde isolou Carpenter, mas o seu livro Love’s Coming of Age vendeu mais de 50 mil cópias até 1914.

Carpenter tinha pontos de vista parecidos aos de Hirschfeld, com a exceção de que ele acreditava que o terceiro sexo era um potencial na maioria das pessoas. Embora radical, ele era essencialmente um utópico – a nova era seria conquistada pela educação e o exemplo do “amor querido de camaradas”. Para ele, o “sexo intermediário”, através do exemplo, teria um papel especial nesse processo de transformação.

“É possível que o espírito uraniano [gay] possa levar a algo como um entusiasmo geral da humanidade, e que o povo uraniano possa ser destinado a formar a vanguarda do grande movimento que um dia transformará a vida comum, fazendo com que a terra de afeição pessoal e de compaixão substitua esta controlada por laços monetários e legais que hoje confinam a sociedade”. [Edward Carpenter, The Intermediate Sex].

Ao todo, foram publicados 4 cadernos de Carpenter sobre a sexualidade. Embora ele fosse o melhor dos escritores britânicos de sua época, não avançou seriamente alem das idéias dos socialistas utópicos.

Embora Bernstein tivesse avançado além das idéias de Hirschfeld, ele possuía um projeto reformista. A sociedade precisaria ser educada para aceitar o homossexualismo – o problema seria a ignorância e o pensamento não científico. O instrumento dessa mudança seria o SPD, educando e transformando gradualmente a sociedade para aceitar o homossexual.

Além disso, embora o SPD impressionasse com seu discurso, as suas ações freqüentemente iam na direção oposta. Embora o partido se pronunciasse, realizasse campanhas e fizesse agitação pela legalização da homossexualidade masculina, a questão era vista como uma bandeira da luta pelas liberdades civis. O SPD, com seus clubes e sociedades, estava firmemente incrustada na “respeitável” classe trabalhadora. A base material da opressão, a família, era poupada. O SPD fora construído dentro da estrutura da sociedade capitalista, e uma das “superestruturas” nas quais estava mais profundamente ligada era a família.

A idéia de que combate pela libertação sexual significava adotar uma visão de socialismo na qual os rótulos de heterossexual e homossexual perderiam seu significado social, em que a família perderia a sua importância e a separação entre as vidas públicas e privadas deixaria de existir era estranha à maior parte do SPD. A estratégia do partido era reformista e não revolucionária.

Como Rosa Luxemburgo argumentou contra Bernstein, o conflito entre reformistas e revolucionários geralmente parece ser um debate de como alcançar o socialismo, mas a divergência é muito mais profunda. Trata-se do que é realmente o socialismo.

A verdade de sua posição foi demonstrada vívida e tragicamente pela atitude do SPD diante da I Guerra Mundial. Apesar de haver defendido a oposição à guerra, na hora H o SPD votou pelos créditos de guerra e apoiou o “seu” governo. Praticamente todos os outros partidos da II Internacional fizeram o mesmo. O nacionalismo que necessariamente resultou do reformismo anulou qualquer compromisso verbal com o internacionalismo.

A tradição socialista de combate À opressa sexual seria a partir daí assumida e desenvolvida pelo Partido Bolchevique e a III Internacional.

Os Bolcheviques

Das cinzas da II Internacional em 1914 e da Revolução Russa de 1917 surgiu a III Internacional em 1919. O SPD, desacreditado pelos internacionalistas, já não era o centro do movimento socialista. A vitória da Revolução Russa tornou-se a principal fonte de inspiração e de direção para os revolucionários e para os milhões de trabalhadores em revolta contra a velha ordem.

Uma onda de lutas revolucionárias varreu a Europa após a I Guerra Mundial. Operários ocuparam fábricas, tomaram de assalto palácios e abalaram o domínio do capital desde Moscou a Glasgow e da Finlândia à Catalunha. Muitas das velhas estruturas de poder foram destruídas. Mas somente na Russa a maré da revolta trouxe à luz um estado operário. Os velhos partidos da II Internacional aliaram-se com as suas classes dominantes para restabelecer a “ordem”. Os internacionalistas, junto com os bolcheviques, formaram a III Internacional e tentaram construir partidos comunistas com base no exemplo russo.

Do mesmo modo como no período anterior a historia da política sexual era parte da historia da esquerda, no século XX ela esteve ligada ao destino da revolução.

Em dezembro de 1917, dois meses após a revolução, os bolcheviques aboliram todas as leis contra a homossexualidade. Ao mesmo tempo o aborto foi legalizado, o divorcio foi garantido e as leis de maioridade foram abolidas. Em dois meses, os bolcheviques conseguiram mais do quem em décadas de reforma liberal no outros países. As liberdades legais garantidas pela revolução foram mais amplas do que quaisquer outras conquistadas antes ou depois da revolução.

Mas os bolcheviques não pode ser julgados apenas por suas palavras. Ao lado das novas leis houve uma tentativa seria para criar alternativas À família, e assim destruir a base material da opressão da mulher. Restaurantes, lavanderias e creches comunais foram estabelecidos para possibilitar às mulheres escaparem da labuta das tarefas domésticas. Todas essas mudanças ocorreram em um país atrasado e destroçado pela guerra, e assim foram sempre limitadas pela pobreza da Rússia, da mesma forma como a própria revolução. Contudo, a Revolução Russa mostrou na prática como uma sociedade socialista poderia começar a erradicar as raízes da opressão sexual.

Como o bolchevique Grigorii Batkis escreveu em 1923:

“A atual legislação sexual na União Soviética é obra da revolução de outubro. Essa revolução é importante não apenas como um fenômeno político que assegura o papel político da classe trabalhadora. Mas também pelas revoluções que se desenvolveram a partir dela atingindo outras áreas da vida (...) (A legislação Soviética) declara a absoluta não interferência do estado e da sociedade em questões sexuais tanto quanto ninguém seja ferido ou tenha seus interesses violados – no que concerne à homossexualidade, sodomia e várias outras formas de gratificação sexual que são consideradas pela legislação européia como ofensas à moralidade. A legislação soviética trata-os de forma exatamente igual ao chamado intercurso ‘natural’.” (citado em Early Homossexual Rights Movement)

Delegados soviéticos foram enviados aos Congressos Internacionais da Liga Mundial pela Reforma Sexual (ela própria um produto do alto nível de luta em todos os campos que se seguiu À I Guerra Mundial) em Berlim em 1921, Copenhage em 1938 e Viena em 1930.

A prática e a política dos comunistas nos anos 20 contrastavam com as do SPD ou de indivíduos progressistas do período anterior. A sua meta não era conseguir a aceitação da homossexualidade, mas sim mudar a sociedade para esvaziar essa palavra de qualquer significado. A revolução buscava varrer, nas palavras de Marx, “toda merda do capitalismo” e substituir a base da opressão sexual – a família.

Mas se a revolução havia começado na Rússia, era na Alemanha que a sua vitória ou derrota seria decidida. A derrota da revolução alemã de 1919 e a ascensão de Hitler em 1933 foi o pano de fundo para o isolamento e a derrota da Revolução Russa. Isolada e acossada pela guerra civil e pelos exércitos invasores, a classe trabalhadora russa foi literalmente destruída enquanto classe. Já pelo início dos anos 20, os bolcheviques foram forçados a agir em nome de uma classe que estava desintegrando-se. No final dos anos 20, o processo de degenerescência estava bem avançado. A vitória de Stalin e da sua teoria do “socialismo num só país” em 1924 foi uma derrota esmagadora para a tradição socialista de combate pela libertação sexual. Uma das principais causas da vitória de Stalin foi a derrota da revolução alemã.

Alemanha 1919 – 33

Quando os soldados, marinheiros e operários derrubaram o Kaiser em 1918, o SPD, então abertamente reformista, tornou-se um dos principais bastiões da velha ordem. Revolucionários como Rosa Luxemburgo, Clara Zetkin e Karl Leibknecht encontraram-se isolados e marginalizados. Rosa Luxemburgo e Liebknecht foram assassinados sob as ordens da SPD, e o capitalismo sobreviveu graças à capacidade do SPD em manter o apoio de milhões de trabalhadores.

Quando os operários e soldados tomaram de assalto o palácio do Kaiser, Magnus Hirschfeld dirigiu-se Às multidões anunciando a aurora de uma nova era e o fim de toda a exploração e opressão. Mas essa nova era seria o fruto não de uma revolução a partir de baixo, mas sim pela tomada do aparato estatal pelo SPD. Com a república de Weimar, pela primeira vez um partido reformista assumiu o governo. Assim, pouco surpreende que os trabalhadores tenham apoiado inicialmente “seu” governo. Mas a medida em que o governo se mostrou incapaz de resolver a profunda crise pela qual passava a Alemanha, o nível da luta de classes elevou-se agudamente.

O elevado nível de luta de classes na Alemanha refletiu-se não só na quantidade de greves e na militância partidária, mas em todos os aspectos da vida. Foi em 1919, que Hirschfeld estabeleceu a sua Fundação para a Pesquisa Sexual e o seu famoso Instituto para a Ciência Sexual em Berlim. Em 1921, ele contribuiu para a convocação e realização da Liga Mundial pela Reforma Sexual, a qual assumiu as leis soviéticas como exemplo e meta para o resto do mundo.

Hirschfeld foi empurrado para a esquerda pelo curso dos acontecimentos, mas permaneceu até o fim como um reformista e membro do SPD – somente mais tarde ele questionou alguns aspectos do seu reformismo. Ele via a república de Weimar como sendo a melhor base para educar as massas, mesmo quando descobriu que tinha que buscar o apoio dos comunistas para conseguir reformas.

Berlim tornou-se o centro de uma cultura gay. A desintegração da velha sociedade, a inquietação e o questionamento dos velhos valores criou um espaço para a tolerância em relação à homossexualidade. Pessoas que, como os escritores ingleses Christopher Isherwood e W. H. Auden (ambos “companheiros de viagem” do Partido Comunista dos anos 30) tinham condições para tanto, iam a Berlim como hoje vão a San Francisco ou Amsterdã. Como disse Isherwood, “Para nós Berlim significava garotos”. Ao contrário da repressiva Grã-Bretanha, lá era possível ser abertamente gay.

Era uma situação que não podia durar. A crise e a recessão que se seguiram à guerra atingiram a Alemanha mais do que qualquer outro lugar. A Alemanha tinha uma classe trabalhadora organizada e poderosa. Havia pouco campo para reformas prolongadas, pois o sistema não podia sustentá-las. A luta durou mais de dez anos, terminando finalmente com o esmagamento de todas as organizações operárias pelos nazistas.

Wilhelm Reich

Uma pessoa que na época esteve a frente da tentativa de fundir a prática comunista com a libertação sexual foi Wilhelm Reich, um discípulo de Freud. Reich via a opressão sexual como um dos grandes males do capitalismo, uma das principais formas pelas quais os trabalhadores eram mantidos dóceis e respeitadores da ordem. O sexo, afirmava ele, era uma força potencialmente libertadora e inquietante. Para serem verdadeiramente revolucionários deveriam libertar-se da opressão sexual. O Partido Comunista, ao mesmo tempo em que educava os seus membros em teoria e atividade política, deveria libertar sexualmente os seus militantes.

Reich, que foi um membro do Partido Comunista nos anos 20 (ele foi expulso em 1929), tinha uma influência particularmente na liga da juventude comunista. Novos recrutas deveriam ler O Estado e a Revolução de Lenin e libertar-se de seus "grilos sexuais". Somente pessoas liberadas sexualmente na teoria e na prática poderiam ser verdadeiramente revolucionárias. O socialismo era o fim da vida familiar monogâmica imposta.

As idéias de Reich adequavam-se ao período do início dos anos 20, quando a onda revolucionária estava em pleno ascenso. Pelo ano de 1929, as atitudes tanto na Rússia como no movimento comunista internacional estavam mudando.

Mas mesmo no ápice de sua influência, havia sérias debilidades nas idéias de Reich. Ele tendia a enfatizar soluções individuais para os problemas de sexualidade reprimida, em parte uma continuação de Freud, uma tendência que se desenvolveria ainda mais com seu rompimento com o Partido Comunista. Ele também tinha uma visão mecânica da sexualidade. Para Reich o orgasmo era algo tangível, uma forma de energia como o calor ou luz. Na verdade ele acreditava que o orgasmo soltava um brilho azul! A libertação era vista como sendo liberação dessa energia.

Porém, mais importante que tudo, Reich nunca rompeu com a teoria dos estágios de desenvolvimento sexual de Freud. Tanto para Freud como para Reich, o ser humano nasce com a capacidade de conseguir prazer sexual de praticamente qualquer fonte, uma sexualidade amorfa que a sociedade direciona e condiciona socialmente. Entretanto, esse processo era visto como se se desenvolvesse de forma linear. A sexualidade se desenvolveria através desses estágios. A saúde de uma pessoa ou de uma sociedade era julgada a partir desses estágios. Para Reich, o capitalismo limitava o desenvolvimento sexual dos indivíduos pela imposição da família e pela repressão do prazer sexual.

Mas nessa teoria, a homossexualidade era um dos estágios através dos quais todas as pessoas deveriam passar. Lésbicas e gays eram vistas como pessoas presas em um estágio sexual inicial - sua "libertação" seria "progredir" para a heterossexualidade. A homossexualidade seria uma regressão. Isso levou Reich a vincular a ascensão do nazismo com a opressão sexual e a homossexualidade.

A escuridão ao meio-dia: a ascensão de Hitler e de Stalin

gays, lésbicas, socialismo, comunismo, reich, freud, heterossexualidadeA década de 30 foi uma das piores épocas para os socialistas. A década presenciou a vitória do fascismo na Alemanha e na Espanha e o domínio final de Stalin na Rússia e no movimento comunista internacional.

A Alemanha havia sido o coração do movimento gay e possuía o maior partido comunista fora da Rússia e um partido social democrata de massas. E, no entanto, Hitler chega ao poder sem sequer um combate.

Os nazistas haviam usado tropas de assalto gay na SA para ajudá-los a assumir o controle das ruas. Na "noite das longas facas" a SA foi eliminada pela SS, que se tornou o principal instrumento de terror. Qualquer ilusão de que os nazistas pudessem ser indulgentes com os gays pelo fato de que alguns de seus primeiros líderes haviam sido gays, foi dissipada de maneira selvagem.

Desde que chegaram ao poder em1933, os nazistas atacaram não somente os judeus, mas também os gays, socialistas, ciganos e sindicalistas. O Instituto de Hirschfeld foi atacado e incendiado. Os sindicatos foram desmantelados, os partidos socialistas e comunistas foram banidos e os ativistas enviados aos campos de concentração. Milhões de vidas pereceram nas câmaras de gás, incluindo centenas de milhares de gays. O triângulo cor de rosa, usado hoje como um símbolo gay, originou-se da identificação usada pelos prisioneiros gays nos campos de concentração de Hitler.

A nova Alemanha seria construída sobre as ruínas das organizações da classe trabalhadora, com todos os elementos considerados como "desvios" sendo utilizados, junto com os judeus como bodes expiatórios - "elementos doentios" eram exterminados para criar a raça pura.

Era um capitalismo sem qualquer esmalte liberal, o nacionalismo nu e cru, o racismo e o sexismo selvagem - as criações da sociedade de classes e do capitalismo levadas às suas conclusões mais extremas e horrendas.

Mas também na Rússia, os acontecimentos seguiam um curso sombrio. No final dos anos 20, Stalin lançou um programa de industrialização forçada para possibilitar ao estado russo competir com o capitalismo ocidental em seu próprio terreno. Todos os ganhos da revolução foram anulados, e os altos custos da industrialização foram suportados pelos trabalhadores e camponeses russos. Os direitos e as organizações dos trabalhadores foram esmagadas, as condições de vida foram pioradas cada vez mais, ao mesmo tempo em que se trabalhava cada vez mais. A resistência a essa contra-revolução foi resolvida com trabalho forçado, exílio e execução. Das cinzas da revolução surgiu uma nova forma de capitalismo - o capitalismo de estado burocrático - o qual se colocou a tarefa de modernizar a Rússia e alcançar o ocidente. A burocracia estatal formada pelos membros dos altos escalões do partido comunista tornou-se a nova classe dominante.

Novamente milhões morreram nesse processo, nos campos de trabalho da Sibéria. Transformar um partido da classe trabalhadora em uma nova classe dominante só era possível com a destruição física daqueles que permaneciam revolucionários. Muitos bolcheviques antigos recordavam os dias em que eles estavam em um partido que lutava pela libertação e pelo socialismo pela base. Eles foram expulsos do partido, exilados ou assassinados. Trotsky tornou-se a figura em torno da qual a oposição se organizou, tendo sido um dos poucos revolucionários que sobreviveu aos expurgos de Stalin. E uma vez mais uma derrota para a esquerda foi uma derrota para gays e lésbicas.

Na medida em que a revolução foi se degenerando durante a década de 20, as conquistas das mulheres sofreram uma erosão progressiva. Cozinhas e creches comunais ou foram fechadas ou se tornaram inadequadas para o uso. O processo iniciado pela revolução de abolir a família foi completamente interrompido. A contra-revolução de Stalin foi mais além, promovendo a família como uma das instituições-chave para manter a ordem e uma nação "saudável".

Em 1934, toda a legislação progressista dos bolcheviques sobre a sexualidade foi revertida. A homossexualidade tornou-se ilegal (ainda é ilegal na União Soviética). Os abortos se tornaram impossíveis de serem realizados a menos que se fosse um membro da classe dominante. As mulheres passaram a ser idealizadas como mães e recebiam medalhas pelo número de filhos que tinham.

De um modo horrendo, a Rússia de Stalin e a Alemanha de Hitler espelhavam um ao outro no tocante à política sexual. Na Alemanha, a homossexualidade era denunciada como uma "prática bolchevique". Na Rússia e nos partidos comunistas ao redor do mundo (agora efetivamente instrumentos da política externa russa), era rotulada como um "desvio burguês", um rótulo que persiste entre alguns setores da esquerda. Os cartazes e a propaganda de ambos os países nos anos 30 eram espelhos uns dos outros. Em ambos, retratavam-se mães saudáveis com crianças em seus braços. O realismo socialista do stalinismo era idêntico à arte nazista na sua dependência de estereótipos sexuais.

O efeito do stalinismo na esquerda dos anos 30 aos anos 60 não pode ser subestimado. Ele quase destruiu a memória do socialismo pela base, do socialismo como criação da classe trabalhadora, da luta pela libertação sexual.

Na Grã-Bretanha, duas correntes dominaram no campo da esquerda, o Partido Comunista stalinista e o Partido Trabalhista reformista. Ambos eram reacionários nas suas idéias e práticas sobre a sexualidade. O Partido Comunista estava imbuído de todas as idéias que já descrevemos e que emanavam da Rússia stalinista. E o Partido Trabalhista estava associado há muito tempo com o metodismo e a "classe trabalhadora respeitável". Quaisquer noções de "desvio" sexual eram vistas como sendo perversões da classe dominante ou da classe média.

A memória do que havia sido a Revolução Russa, nas palavras de Lenin o "festival dos oprimidos", foi quase extinta. A tarefa de manter vivas as idéias marxistas nas piores condições possíveis coube a pequenos grupos isolados que se aglutinavam em torno de Trotsky. Marginalizados como estavam, as idéias se tornaram distorcidas. Essas idéias só foram redescobertas com a revitalização da luta nos anos 60.

A tradição stalinista não só abandonou qualquer luta pela libertação gay, mas também vinculava a homossexualidade com o nazismo, como produtos similares do capitalismo decadente. Exemplo típico das atitudes do stalinismo nessa época é este extrato de uma resenha de uma peça de Mae West publicada na revista americana The New Masses em 1934:

"(...)a introversão é essencialmente uma doença de classe e o resultado direto de uma vida sibarita [vida dada a prazeres, N.doT.] que finalmente resulta num profundo tédio pela falta de qualquer estímulo ou excitação possíveis. Está invariavelmente associada com aqueles elementos gêmeos de perversão, o sadismo e o masoquismo, e geralmente revela-se entre os representantes de uma classe decadente. A crueldade sádica do hitlerismo não é acidente. É o sintoma inequívoco de uma doença incurável (...) foi somente com o advento do Fuehrer que a homossexualidade foi elevada à categoria da arte de governar". [ citado em Joseph North (ed.), New Masses Internacional Publishers]

Ao mesmo tempo em que isto estava sendo escrito dezenas de milhares de lésbias e gays estavam sendo levados às câmaras de gás de Hitler.

E, no entanto, os partidos comunistas tinham em suas fileiras muitos escritores e "companheiros de viagens" gays famosos - W H Auden, Christopher Isherwood, Stephen Spender, E M Forster, entre outros. Eles nada disseram à época, em parte devido ao sentimento de culpa (culpa de ser classe média, mesclada à culpa de ser gay) e em parte pelos tempos sinistros. Somente André Gide criticou a Rússia por ter uma posição reacionária sobre a questão, e por causa disso foi violentamente atacado pela "esquerda". A vasta maioria dos "companheiros de viagens" dos anos 30 abandonou a política de esquerda nos anos 40 e 50. Alguns passaram para a direita. Auden retornou ao catolicismo, e Isherwood voltou-se para o misticismo oriental.

Mas nos anos 30, com a maré crescente do fascismo, o comunismo stalinista - não importava o quão suspeitas algumas de suas idéias fossem - parecia ser a única esperança para a maioria dos socialistas. A homossexualidade voltou para os porões da sociedade e deixou de ser parte da tradição da esquerda. Os gays viram-se encerrados em um mundo secreto de pessoas que eram identificadas por códigos e senhas somente compreendidos por elas próprias. Permaneceram encerrados num mundo subterrâneo dos bares gays, dos clubes privados, dos banheiros públicos e da linguagem codificada.

Stonewall e a ascensão da libertação gay

Foi somente no final da década de 50 que o edifício stalinista começou a rachar. Na Hungria em 1956, Checoslováquia em 1968 e na Polônia em 1970, a luta dos trabalhadores, que estava paralisada há mais de duas gerações, voltou para ameaçar os governantes do Ocidente e do Leste.

Mas foi no Ocidente que o movimento se fez sentir mais, remodelando o pensamento da esquerda. A revolta de Stonewall, com a subseqüente criação da Frente de Libertação Gay [FLG], foi um marco para a reintrodução da luta pela libertação gay na política da esquerda. Mas, do mesmo modo como nos períodos anteriores, devemos compreender essa nova evolução da política gay dentro do contexto mais amplo da luta de classes.

Stonewall ocorreu em um momento de ascenso da luta de massas. Houve muitas revoltas dos oprimidos através da história do capitalismo, mas é apenas nos momentos em que há um alto nível de luta generalizada que essas revoltas podem gerar resultados significativos. A revolta de Stonewall levou diretamente à criação de um movimento político, do mesmo modo que as revoltas negras dos anos 60 nos EUA levaram ao nascimento do Partido dos Panteras Negras. A FLG foi um fruto do avanço das lutas políticas.

Esse próprio ascenso foi o resultado de vários fatores. Foi em parte uma conseqüência das mudanças do próprio capitalismo. Com o longo boom do pós-Guerra, o maior de toda a história do capitalismo, o sistema atravessou as décadas de 40 e 50 até chegar aos anos 60 sem passar pelas recessões típicas à natureza cíclica da economia capitalista. Houve uma falta de mão-de-obra nas economias em expansão do Ocidente, e, assim, milhões de mulheres tornaram-se trabalhadoras nas novas indústrias em crescimento. A vida familiar tradicional mudou rapidamente.

A expansão minou a família, empurrando as mulheres ao mercado de trabalho, dando-lhes assim um grau muito maior de independência econômica, e concedendo reformas que, de algum modo, foram de encontro às aspirações crescentes dos trabalhadores. O Estado do bem-estar social foi a mais importante dessas reformas: e embora estivesse imbuído de todo o lixo sexista e reacionário do sistema, ajudou a libertar as mulheres da prisão do lar.

O advento da pílula e a disponibilidade de um amplo serviço de aconselhamento contraceptivo finalmente cortaram o laço entre sexo e reprodução para os heterossexuais.

Os dias em que a classe trabalhadora só possuía a família para recorrer, como havia sido durante o desemprego de massas nos anos 30, estavam terminados. As mulheres trabalhadoras estavam livres do constante temor da gravidez. Os "permissivos" anos 60 foram, pelo menos em parte, conseqüência do próprio crescimento do capitalismo. A elevação do padrão de vida e as expectativas crescentes levaram a uma crise dos velhos valores morais que haviam dominado a primeira metade do século.

Mas o fator mais importante foi a luta que minou a força das idéias reacionárias. Após as derrotas das décadas de 20, 30 e 40, a classe trabalhadora cresceu numericamente e ganhou confiança com as lutas que começou a travar nos anos 50. As greves eram curtas, mas eram freqüentes e em sua maioria eram vitoriosas. Essa foi a base para o grande ascenso das lutas de massas no final dos anos 60.

O sistema, tanto no Ocidente quanto no Leste, foi abalado pela onda massiva de lutas que varreu o mundo - o movimento anti-guerra nos EUA, a revolta operária e estudantil na França e a "Primavera de Praga" em 1968, Itália em 1969, Grã-Bretanha em 1972 e 1974, Portugal em 1974.

A guerra do Vietnã tornou-se um foco importante para essa maré de revolta e luta. Nos EUA, o movimento contra a guerra envolveu milhões de pessoas, e as manifestações em Washington aglutinavam centenas de milhares. Os guetos negros foram o cenário de grandes revoltas com as massas de trabalhadores negros exigindo direitos iguais e questionando a sua opressão. O movimento de mulheres conheceu idêntico crescimento. Foi uma época em que o sistema estava sendo desafiado por todos os lados, quando a opressão estava sendo reconhecida e combatida. Foi uma época em que a esquerda revolucionária saiu do isolamento e passou a crescer rapidamente. E foi também o renascimento da política gay com a revolta de Stonewall.

Stonewall

Era noite de sexta-feira no bar Stonewall, no dia 27 de junho de 1969. Estava cheio como sempre. Stonewall era um bar na Christopher Street, situado em Greenwich Village, centro de Nova Iorque. Como hoje, era o centro gay da cidade. Duzentos gays estavam presentes, todos homens, 50 ou mais travestis.

Stonewall era uma espelunca, e seus clientes eram, em sua maioria, jovens trabalhadores. Como a maioria dos bares gays, Stonewall era controlado pela Máfia, o que significava preços altos. O bar permanecia aberto apenas por causa das propinas pagas à polícia.

Para justificar os pagamentos a polícia fazia batidas ocasionalmente. Naquela noite quente de 1969, oito policiais resolveram dar uma batida em Stonewall. Eram apenas oito porque era um bar de "fadas" - quem já poderia imaginar que eles lutassem? Assim, não esperavam qualquer problema.

Para começar a batida seguiram a rotina de sempre - a polícia encheu os camburões para levá-los à delegacia. Lá seriam interrogados, mantidos para identificação e humilhados, a mercê dos policiais.

Mas, naquele dia, uma multidão começou a se juntar ao redor do bar, gritando e provocando a polícia. De repente a multidão, cada vez maior, começou a ficar cada vez mais zangada. Antes que se dessem conta do que estava acontecendo, os policiais se viram diante de uma multidão hostil que avançava sobre eles.

Os policiais recuaram, alguns com as pistolas sacadas, para dentro do bar vazio. A multidão libertou os gays que estavam dentro dos camburões e sitiou os policiais dentro do bar. Encurralados, os policiais ligaram para a delegacia pedindo auxílio.

A delegacia enviou a "Força Policial Tática", a tropa de choque de Nova Iorque normalmente usada somente no Harlem. Isso desencadeou uma revolta. Janelas foram quebradas, alarmes contra incêndio foram ativados, latas de lixo foram usadas como mísseis e os carros da polícia incendiados.

A revolta durou três noites, começando no crepúsculo e terminando ao alvorecer. A polícia foi obrigada a recuar da área. Incidentes menores iriam ocorrer durante todo o verão, até a formação, no mês de agosto, da Frente de Libertação Gay.

A FLG tomou Nova Iorque e a polícia de surpresa. Um ato "normal" da opressão cotidiana desencadeou uma resposta. A FLG realizou uma campanha contra os donos dos bares gays, os quais eram vistos como parasitas que exploravam os gays com seus preços exorbitantes e mantinham uma ligação com a polícia corrupta. A FLG realizava reuniões públicas, publicava um jornal, o Outcome, e organizou um dia de ação para retomar a Chrisropher Street das mãos da polícia - um dia para ser abertamente gay nas ruas.

Hoje em dia, manifestações pelo orgulho gay são realizados no mundo todo para celebrar a revolta de Stonewall. Ironicamente aquela revolta foi em parte um movimento contra os proprietários da "economia cor-de-rosa" - as pessoas que hoje estão na organização das manifestações.

Stonewall- consequências e conquistas

A FLG assumiu o nome inspirando-se nos inimigos do estado norte-americano - os Viet Congs e os norte-vietnamitas. Começou com o que na época era comum, mas hoje é raro - uma identificação com a luta revolucionária. Houveram muitos problemas na política do movimento gay no início dos anos 70, mas começou a partir de uma perspectiva revolucionária que foi um grande marco para a compreensão e a luta contra a opressão gay.

A FLG era uma organização de combate nascida nas ruas, e despendeu a maior parte de seu tempo lutando nas ruas. Seus slogans resumiam a sua nova análise da opressão gay - "Diga em alto e bom som, eu sou gay e tenho orgulho disso", "Não sou eu quem está doente, mas sim uma sociedade que me chama de doente".

A ênfase estava no fato de que os gays viviam em uma sociedade opressora que tinha que ser mudada. E essa mudança só poderia vir com os gays e lésbicas lutando abertamente nas ruas. A luta contra a opressão gay começa a partir do ato de assumir - os gays têm que se assumir publicamente e lutar para mudar as atitudes das pessoas e combater todas as formas de perseguição e preconceito. Tudo isso era excelente e um grande passo adiante.

Talvez um dos desenvolvimentos mais importantes do movimento gay foi a importância dada à atitude de assumir a sua opção sexual. O primeiro opressor dos gays são eles próprios - chegar a um termo com uma sexualidade que é taxada de "desvio" pela sociedade significa aprender a ter orgulho e não vergonha de sua sexualidade.

A FLG não só analisou a opressão gay, mas de modo geral esboçou a saída para superá-la, através da luta. Eles se identificaram com as lutas mais amplas contra o sistema. Tomaram parte em debates com os Panteras Negras, argumentando contra suas idéias machistas anti-gay - um debate que, pelo menos formalmente, eles ganharam. Eles estiveram envolvidos não somente com questões relacionadas aos gays, mas também participaram ativamente das manifestações contra a guerra do Vietnã. Eles viam a necessidade de transformar radicalmente a sociedade, em outras palavras, a necessidade de esmagar o capitalismo.

O Caminho a Diante

Ao longo deste caderno, afirmamos repetidas vezes que a única solução para a opressão gay e todas as outras opressões na sociedade é o socialismo - a conquista do poder pela classe trabalhadora e a construção de uma nova sociedade.

A opressão gay está enraizada no modo como o socialismo está estruturado e organizado. O problema não é simplesmente que muitas pessoas têm idéias erradas em suas cabeças, mas que essas idéias refletem o modo no qual a sociedade está organizada - elas possuem uma base material. A importância da família para o capitalismo e a ameaça que os gays representam para a família significa que a opressão gay é um traço inevitável do capitalismo.

A história da luta contra a opressão gay está vinculada à história da luta de classes e da luta pelo socialismo. O movimento marxista em seus primórdios via a luta pela libertação gay como uma parte necessária da luta pelo socialismo. E cada derrota sofrida pela esquerda tem sido derrota para os direitos gays e uma senha para perseguições maiores de lésbicas e gays.

Pois os oprimidos não podem alcançar a libertação por si sós. As divisões de classe, a divisão que não ousa pronunciar seu nome, perpassam a história e a prática do movimento gay. A libertação gay é uma questão de classe. Lésbicas e gays da classe trabalhadora são os mais oprimidos, aqueles que mais sofrem os preconceitos e as perseguições, os que foram mais excluídos das reformas e ganhos dos anos 60 e 70. O movimento gay, mesmo na sua expressão mais radical - a FLG -, falhou em apreciar o problema e superá-lo. A divisão fundamental que existe na sociedade, incluindo a sociedade gay, é a divisão de classes.

É difícil para a maioria das lésbicas e gays ver na classe trabalhadora e na luta pelo socialismo a saída para conquistar a libertação. Isso significa aceitar a idéia de que a esperança está no setor da população que no momento é o mais homófobico (anti-gay e anti-lésbicas).

Na maior parte do tempo, as divisões que existem no interior da classe trabalhadora - entre gays e heterossexuais, brancos e negros, homens e mulheres - parecem ser imutáveis. Contudo, cada luta da classe trabalhadora quebra essas divisões aos poucos. Quando a luta de classes atinge níveis particularmente elevados, é possível derrubar séculos de preconceito, na medida em que a luta unifica todos os trabalhadores, passando por cima de todas as divisões "normais" da sociedade.

Na Rússia pré-revolucionária, o peso da reacionária Igreja Ortodoxa russa e dos séculos de atraso levou a níveis horríveis de anti-semitismo. Os judeus eram barrados por lei de possuir terras ou assumir certos postos. As vilas judias eram sujeitas a ataques e progooms. Em toda a Europa nenhum outro lugar possuía níveis tão profundos de preconceito cego. E, no entanto, durante as revoluções de 1905 e 1917 o mais importante conselho operário criado pelos trabalhadores russos elegeu como presidente um judeu, Leon Trotsky. Os bolcheviques, que conquistaram a maioria nos conselhos no final de 1917, tinham inúmeros judeus na sua direção. No processo de conquista do poder os trabalhadores russos haviam superado séculos de preconceito.

Um exemplo mais recente é a grande greve dos mineiros ingleses de 1984-85. A organização de um grupo de apoio à greve formado por gays e lésbicas levou uma delegação de mineiros a encabeçar, com o estandarte da mina que representavam e com uma banda musical, a manifestação pelo Orgulho Gay de 1985. Esse era um setor da classe trabalhadora que, antes da greve, dificilmente poderia ser igualado pela sua tradição reacionária em questões relacionadas à sexualidade. A categoria dos mineiros é formada exclusivamente por homens. Muitos vivem em vilas isoladas, longe das influências "corruptíveis" das grandes cidades e do cenário gay.

E, apesar de tudo isso, sua experiência durante a greve levou-os a serem ganhos para o apoio aos direitos gays e, assim, muitos mineiros tiveram condições de passar a assumir abertamente a sua sexualidade. Mesmo uma greve defensiva, que foi derrotada, mostrou como a experiência da luta pode superar idéias reacionárias.

É claro que essas mudanças não são automáticas. A luta apenas cria a possibilidade para transformar as idéias. Daí porque é necessária uma organização socialista - para organizar os setores mais avançados da classe trabalhadora para argumentar e conquistar mais trabalhadores. Para discutir com os trabalhadores a necessidade da libertação gay e discutir com gays e lésbicas a necessidade de lutar pelo socialismo. Por isso precisamos de um partido revolucionário baseado na idéia do socialismo como a auto-emancipação da classe trabalhadora através da luta. Nós, da tendência Socialismo Internacional, lutamos para construí-lo.

Nós vivemos em um mundo de extremas contradições - milhões morrem de fome e desnutrição, enquanto toneladas de alimentos são destruídas pelos capitalistas do mundo todo para manter os preços elevados. Milhares de trabalhadores da construção civil estão nas filas de desempregados enquanto milhares de pessoas vivem nas ruas, sob viadutos, porque não possuem casa. O capitalismo cria um sistema com um potencial vasto, com inovações tecnológicas e invenções que poderiam criar uma sociedade de riqueza e prosperidade para todos, mas que são usados para produzir lucros e não para suprir as necessidades humanas.

O capitalismo é uma sociedade que se baseia na promoção da divisão e dos preconceitos para dividir e dominar. Mas é também um sistema que cria a classe que pode destruí-lo para construir em seu lugar um mundo novo. Essa classe, a classe trabalhadora, tem o poder para acabar com todas as opressões e com a exploração. Para isso tem que destruir as velhas instituições da sociedade e construir outras instituições, realmente democráticas, que possam dirigir diretamente a sociedade - os conselhos de trabalhadores com delegados revogáveis e o poder real para controlar o que a sociedade produz. Tal tarefa parece ser impossível agora, mas todos os períodos históricos em que a luta de classes chegou a ameaçar o domínio burguês os conselhos surgiram, ainda que em forma embrionária, como na França em 1968, Chile em 1973, Portugal em 1975, Irã em 1979, Polônia em 1980-81, para ficarmos apenas nesses exemplos. Tais lutas não surgem por decreto, mas sim da natureza do próprio sistema. Na medida em que a crise do capitalismo se aprofunda é cada vez maior a possibilidade de que movimentos revolucionários desse porte se repitam.

No presente momento, as lésbicas e os gays são vítimas de um preconceito cada vez maior, alimentado pela mídia e pela direita, principalmente com o advento da AIDS nas décadas passadas. É particularmente importante nessa situação que todos os socialistas defendam e lutem pela libertação gay. Mas também é fundamental que defendamos a necessidade da sociedade socialista, uma sociedade onde a idéia de libertação gay torna-se uma realidade palpável, e onde a divisão artificial entre "heterossexuais" e "homossexuais" possa ser derrubada de uma vez por todas.

O socialismo não se refere apenas ao fim de toda opressão e exploração. É também uma luta para que nos libertemos de todos os preconceitos e toda a repressão que distorcem e destroem a nossa sexualidade.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Oxalá, por Eduardo Galeano

Barack Obama, primeiro presidente negro da história dos Estados Unidos, concretizará o sonho de Martin Luther King ou o pesadelo de Condoleezza Rice? Esta Casa Branca, que agora é sua casa, foi construída por escravos negros. Oxalá ele não se esqueça disso, nunca.

Obama provará no governo que suas ameaças de guerra contra o Irã e o Paquistão não foram mais do que palavras, proclamadas para seduzir ouvidos difíceis durante a campanha eleitoral?

Oxalá. E Oxalá não caia por nenhum momento na tentação de repetir as façanhas de George W. Bush. Ao fim e ao cabo, Obama teve a dignidade de votar contra a guerra do Iraque, enquanto o Partido Democrata e o Partido Republicano ovacionavam o anúncio dessa carnificina.

Durante sua campanha, a palavra “leadership” foi a mais repetida nos discursos de Obama. Durante seu governo, continuará crendo que seu país foi escolhido para salvar o mundo, tóxica idéia que compartilha com quase todos seus colegas? Seguirá insistindo na liderança mundial dos Estados Unidos e na sua messiânica missão de mando?

Oxalá esta crise atual, que está sacudindo os cimentos imperiais, sirva ao menos para dar um banho de realismo e de humildade a este governo que começa.

Obama aceitará que o racismo seja normal quando exercido contra os países que seu país invade? Não é racismo contar um por um os mortos dos invasores no Iraque e ignorar olimpicamente os muitíssimos mortos entre a população invadida? Não é racista este mundo onde há cidadãos de primeira, segunda e terceira categoria, e mortos de primeira, segunda e terceira?

A vitória de Obama foi universalmente celebrada como uma batalha ganha contra o racismo. Oxalá ele assuma, a partir de seus atos de governo, esta formosa responsabilidade.

O governo de Obama confirmará, uma vez mais, que o Partido Democrata e o Partido Republicano são dois nomes de um mesmo partido?

Oxalá a vontade de mudança, que estas eleições consagraram, seja mais do que uma promessa e mais que uma esperança. Oxalá o novo governo tenha a coragem de romper com essa tradição de partido único, disfarçado de dois partidos, que, na hora da verdade, fazem mais ou menos o mesmo ainda que simulem uma disputa entre eles.

Obama cumprirá sua promessa de fechar a sinistra prisão de Guantánamo? Oxalá, e Oxalá acabe com o sinistro bloqueio a Cuba.

Obama seguirá acreditando que está certo que um muro evite que os mexicanos atravessem a fronteira, enquanto o dinheiro passa livremente sem que ninguém lhe peça passaporte?

Durante a campanha eleitoral, Obama nunca enfrentou com franqueza o tema da imigração. Oxalá a partir de agora, quando já não corre o risco de espantar votos, possa e queira acabar com esse muro, muito maior e vergonhoso que o Muro de Berlim, e com todos os muros que violam o direito à livre circulação das pessoas.

Obama, que com tanto entusiasmo apoiou o recente presente de 750 bilhões de dólares aos banqueiros, governará, como é costume, para socializar as perdas e para privatizar os lucros. Temo que sim, mas oxalá que não.

Obama firmará e cumprirá o protocolo de Kyoto, ou seguirá outorgando o privilégio da impunidade à nação mais envenenadora do planeta? Governará para os automóveis ou para as pessoas? Poderá mudar o rumo assassino de um modo de vida de poucos no qual se rifam o destino de todos?

Temo que não, mas Oxalá que sim.

Obama, primeiro presidente negro da história dos Estados Unidos, concretizará o sonho de Martin Luther King ou o pesadelo de Condoleezza Rice? Esta Casa Branca, que agora é sua casa, foi construída por escravos negros. Oxalá ele não se esqueça disso, nunca.

Publicado originalmente no jornal Página 12 em 6/11/2008 e reproduzido pela agência Carta Maior em 9/11/2008, com tradução de Katarina Peixoto

créditos: http://www.anncol-brasil.blogspot.com/

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Reflexões sobre um fio de cabelo.

Eu estava na frente do espelho, escovando os dentes. Gostava do que via. Embora meu cabelo estivesse totalmente branco, eu não tinha o menor sinal de calvície. Os fios imaculados, contra a pele queimada do sol, me davam um ar de armador grego. Sem tirar os olhos do reflexo, abaixei-me para cuspir a pasta. E então percebi que havia um fio preto na minha cabeça.

Não é possível, sussurrei. Não tenho idade para isso. Fiquei ali parado, só meus olhos se mexiam, incrédulos com a presença do intruso. Erguia-se grosso e retinto, bem no meio da franja, sem deixar dúvidas sobre si mesmo. Tranquei a porta do banheiro. Não queria que minha mulher me visse com aquele fio preto na cabeça. Era só arrancá-lo e pronto, ninguém ficaria sabendo. Mas e se esse for apenas o primeiro de muitos? Então estou ficando jovem, pensei.

Logo estarei grisalho, e não demora para que eu esteja andando por aí com uma cabeleira negra ao vento; um rapazinho, livre e ávido por novas experiências. Vou chegar ao escritório, às oito horas da manhã, e perguntar para mim mesmo: o que estou fazendo nesta baia, com um crachá pendurado no peito, quando o meu sonho é ser músico? Nada, nem o salário, nem o plano de previdência, nem o bônus de final de ano, vai conseguir me prender àquela cadeira ergonômica e giratória. Sem pensar duas vezes, entrarei na sala do meu chefe e lhe direi que estou largando tudo em nome da minha realização pessoal. Ele dirá que eu estou louco. Eu tomarei o insulto como elogio, e sairei da sala assobiando, com a confiança dos que ainda têm tudo pela frente.

Passarei a viver com pouco dinheiro, mas não vou me incomodar com isso, já que não verei mais diferença entre um guardanapo de pano ou de papel, um ingresso para a numerada ou para a geral. Ficarei horas de pé na calçada em frente ao boteco, tomando cerveja morna no copo de plástico e ouvindo o papo de meia dúzia de maconheiros, e acharei que tive uma noite incrível. Minha alma irá encher-se como uma esponja. Não terei mais medo de candidatos de esquerda, radicais livres e frituras. Me sentirei imortal, indestrutível e, de repente, vou achar que posso mudar o mundo. Já me vejo com a veia do pescoço saltada, tentando convencer os meus colegas de golfe a entrarem numa ONG pela libertação do Tibet. Serei ignorado e, a partir desse dia, só irei andar com a minha própria tribo.

Vou chegar em casa com o cabelo espetado e bastõezinhos de metal enfiados na língua e na orelha, e dizer para minha mulher que pô cara, o casamento miou, já era, não rola mais. A comodidade de estar com alguém que conhece todos os meus defeitos, e não se importa mais com eles, vai me parecer totalmente irrelevante. Que se foda a estabilidade emocional. Que se foda o gosto em comum pela tranca e pela pizza de massa fina. Eu vou querer é paixão, o peito arfante e a garganta seca, o pau arrebentando o zíper, madrugadas em claro trepando e rindo de bobagens e desenhando sombras na parede. Vou perder tudo que eu tenho no divórcio, serei chamado de imbecil pelos meus próprios filhos, e nem isso será capaz de arrancar o sorriso que estampará o meu rosto de têmpora a têmpora. E quando essa paixão acabar – hoje em dia nada dura mais que uma série de TV –, irei atrás de outras. Chegarei em dez, vinte mulheres na seqüência, e não me importarei de começar tudo de novo, de responder qual meu signo e meu ascendente, de pagar a conta e de levar para casa, desde que eu tenha a chance de pegar em uns peitinhos no final da noite.

Serei um ser incansável. Cruzarei o país na poltrona de um ônibus convencional só para correr atrás de um trio elétrico. Subirei montanhas com uma barraca nas costas só para ver paisagens diferentes. E então voltarei cheio de histórias para o conforto do meu lar. Um apê que dividirei com três marmanjos que nunca ouviram falar de uma vassoura. Mas quem se importa com a falta de conforto quando se tem o espírito leve e o coração pulsante?, eu perguntei para mim mesmo. Então tirei os olhos do espelho, fitei o imenso banheiro ao meu redor, pensei nos meus chinelos ao pé da cama, e arranquei, de um só golpe, o fio preto da minha cabeça.


De Giovana Madalosso.

sábado, 8 de novembro de 2008

Homossexualidade e outros pecados...

CRISTÃOS FUNDAMENTALISTAS são os que acreditam que as sagradas escrituras foram ditadas diretamente por Deus e que, por isso, tudo o que nelas está escrito é sagrado, verdadeiro e deve ser obrigatoriamente obedecido para sempre. A verdade divina está fora do tempo. Aquilo que Deus comandava há 3.000 anos é válido para hoje e para todos os tempos futuros.

Digo isso a propósito de uma carta dirigida a Laura Schlessinger, conhecida locutora de rádio nos Estados Unidos que tem um desses programas interativos que dá respostas e conselhos aos ouvintes que a chamam ao telefone. Recentemente, perguntada sobre a homossexualidade, a locutora disse que se trata de uma abominação, pois assim a Bíblia o afirma no livro de Levítico 18:22. Um ouvinte escreveu-lhe então uma carta que vou transcrever:

"Querida doutora Laura, muito obrigado por se esforçar tanto pra educar as pessoas segundo a lei de Deus. (...) Mas, de qualquer forma, necessito de alguns conselhos adicionais de sua parte a respeito de outras leis bíblicas e sobre a forma de cumpri-las: gostaria de vender minha filha como serva, tal como o indica o livro de Êxodo 21:7. Nos tempos em que vivemos, na sua opinião, qual seria o preço adequado?

O livro de Levítico 25:44 estabelece que posso possuir escravos, tanto homens quanto mulheres, desde que não sejam adquiridos de países vizinhos. Um amigo meu afirma que isso só se aplica aos mexicanos, mas não aos canadenses. Será que a senhora poderia esclarecer esse ponto? Por que não posso possuir canadenses?

Sei que não estou autorizado a ter qualquer contato com mulher alguma no seu período de impureza menstrual (Levítico 18:19, 20:18 etc.).O problema que se me coloca é o seguinte: como posso saber se as mulheres estão menstruadas ou não? Tenho tentado perguntar-lhes, mas muitas mulheres são tímidas e outras se sentem ofendidas.

Tenho um vizinho que insiste em trabalhar no sábado. O livro de Êxodo 35:2 claramente estabelece que quem trabalha aos sábados deve receber a pena de morte. Isso quer dizer que eu, pessoalmente, sou obrigado a matá-lo? Será que a senhora poderia, de alguma maneira, aliviar-me dessa obrigação aborrecida?

No livro de Levítico 21:18-21 está estabelecido que uma pessoa não pode se aproximar do altar de Deus se tiver algum defeito na vista. Preciso confessar que eu preciso de óculos para ver. Minha acuidade visual tem de ser 100% para que eu me aproxime do altar de Deus?

Eu sei, graças a Levítico 11:6-8, que quem tocar a pele de um porco morto fica impuro. Acontece que adoro jogar futebol americano, cujas bolas são feitas de pele de porco. Será que me será permitido continuar a jogar futebol americano se usar luvas?

Meu tio tem um sítio. Deixa de cumprir o que diz Levítico 19:19, pois que planta dois tipos diferentes de semente ao mesmo campo, e também deixa de cumprir a sua mulher, que usa roupas de dois tecidos diferentes -a saber, algodão e poliéster. Será que é necessário levar a cabo o complicado procedimento de reunir todas as pessoas da vila para apedrejá-la? Não poderíamos queimá-la numa reunião privada?

Sei que a senhora estudou esses assuntos com grande profundidade de forma que confio plenamente na sua ajuda. Obrigado de novo por recordar-nos que a palavra de Deus é eterna e imutável".


-Rubem Alves

Somos todos pós-modernos?

A resposta é sim se comungamos essa angústia, essa frustração frente aos sonhos idílicos da modernidade. Quem diria que a revolução russa terminaria em gulags, a chinesa em capitalismo de Estado e tantos partidos de esquerda assumiriam o poder como o violinista que pega o instrumento com a esquerda e toca com a direita?

Nenhum sistema filosófico resiste, hoje, à mercantilizaçã o da sociedade: a arte virou moda; a moda, improviso; o improviso, esperteza. As transgressões já não são exceções, e sim regras. O avanço da tecnologia, da informatização, da robótica, a gloogletização da cultura, a telecelularizaçã o das relações humanas, a banalização da violência, são fatores que nos mergulham em atitudes e formas de pensar pessimistas e provocadoras, anárquicas e conservadoras.

Na pós-modernidade, o sistemático cede lugar ao fragmentário, o homogêneo ao plural, a teoria ao experimental. A razão delira, fantasia-se de cínica, baila ao ritmo dos jogos de linguagem. Nesse mar revolto, muitos se apegam às "irracionalidades" do passado, à religiosidade sem teologia, à xenofobia, ao consumismo desenfreado, às emoções sem perspectivas.

Para os pós-modernos a história findou, o lazer se reduz ao hedonismo, a filosofia a um conjunto de perguntas sem respostas. O que importa é a novidade. Já não se percebe a distinção entre urgente e importante, acidental e essencial, valores e oportunidades, efêmero e permanente.

A estética se faz esteticismo; importa o adorno, a moldura, e não a profundidade ou o conteúdo. O pós-moderno é refém da exteriorização e dos estereótipos. Para ele, o agora é mais importante que o depois.

Para o pós-moderno, a razão vira racionalização, já não há pensamento crítico; ele prefere, neste mundo conflitivo, ser espectador e não protagonista, observador e não participante, público e não ator.

O pós-moderno duvida de tudo. É cartesianamente ortodoxo. Por isso não crê em algo ou em alguém. Distancia-se da razão crítica criticando-a. Como a serpente Uroboros, ele morde a própria cauda. E se refugia no individualismo narcísico. Basta-se a si mesmo, indiferente à dimensão social da existência.

O pós-moderno tudo desconstrói. Seus postulados são ambíguos, desprovidos de raízes, invertebrados, sensitivos e apáticos. Ao jornalismo, prefere o shownalismo.

O discurso pós-moderno é labiríntico, descarta paradigmas e grandes narrativas, e em sua bagagem cultural coloca no mesmo patamar Portinari e Felipe Massa; Guimarães Rosa e Paulo Coelho; Chico Buarque e Zeca Pagodinho.

O pós-modernismo não tem memória, abomina o ritual, o litúrgico, o mistério. Como considera toda paixão inútil, nem ri nem chora. Não há amor, há empatias. Sua visão de mundo deriva de cada subjetividade.

A ética da pós-modernidade detesta princípios universais. É a ética de ocasião, oportunidade, conveniência. Camaleônica, adapta-se a cada situação.

A pós-modernidade transforma a realidade em ficção e nos remete à caverna de Platão, onde nossas sombras têm mais importância que o nosso ser e as nossas imagens que a existência real.



Frei Betto - escritor, autor de "Calendário do Poder" (Rocco), entre outros livros.

O Sistema

De cada cem crianças que nascem vivas na Guatemala ou no Chile, morrem oito. Morrem oito também nos subúrbios populares de São Paulo, a cidade mais rica do Brasil. Acidente ou assassinato? Os criminosos têm a chave das prisões. Esta é uma violência sem tiros. Não serve para as novelas policiais. Aparece, congelada, nas estatísticas - quando aparece. Mas as guerras reais nem sempre são as mais espetaculares e bem se sabe que os relâmpagos dos tiros deixaram muita gente cega e surda.

A comida é mais cara no Chile que nos Estados Unidos: o salário mínimo, dez vezes mais baixo. A quarta parte dos chilenos não possui renda e sobrevive de teimosa. Os motoristas de táxis de Santiago já não compram dólares dos turistas: oferecem meninas que farão amor a troco de um jantar.

O consumo de sapatos se reduziu cinco vezes, no Uruguai, nos últimos vinte anos. Nos últimos sete, o consumo de leite em Montevidéu caiu pela metade.

Os presos da necessidade, quantos são? É livre um homem condenado a viver perseguindo o trabalho e a comida? Quantos têm o destino marcado na testa desde o dia em que apareceram ao mundo e choram pela primeira vez? A quantos se nega o sol e o sal?



- Conto extraído do livro "Dias e Noites de Amor e de Guerra", do escritor uruguaio Eduardo Galeano. Escrito na década de 70, mas bastante atual.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Primeiro texto?

Primeiro post.
Será que ele vai fazê-los voltar?
Provavelmente não.

Provavelmente não porque não estou aqui para falar as coisas que todo mundo quer ouvir, pelo menos não o tempo todo.

Provavelmente não porque pretendo questioná-lo acerca do seu papel na sociedade.
Não agora, mas no decorrer desse tempo que virá.

Para que estamos vivendo?
Para quem estamos vivendo?

Você sabe?
Você sabe pelo que viveria se pudesse viver pra sempre?

Eu sei.