quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Reflexões sobre um fio de cabelo.

Eu estava na frente do espelho, escovando os dentes. Gostava do que via. Embora meu cabelo estivesse totalmente branco, eu não tinha o menor sinal de calvície. Os fios imaculados, contra a pele queimada do sol, me davam um ar de armador grego. Sem tirar os olhos do reflexo, abaixei-me para cuspir a pasta. E então percebi que havia um fio preto na minha cabeça.

Não é possível, sussurrei. Não tenho idade para isso. Fiquei ali parado, só meus olhos se mexiam, incrédulos com a presença do intruso. Erguia-se grosso e retinto, bem no meio da franja, sem deixar dúvidas sobre si mesmo. Tranquei a porta do banheiro. Não queria que minha mulher me visse com aquele fio preto na cabeça. Era só arrancá-lo e pronto, ninguém ficaria sabendo. Mas e se esse for apenas o primeiro de muitos? Então estou ficando jovem, pensei.

Logo estarei grisalho, e não demora para que eu esteja andando por aí com uma cabeleira negra ao vento; um rapazinho, livre e ávido por novas experiências. Vou chegar ao escritório, às oito horas da manhã, e perguntar para mim mesmo: o que estou fazendo nesta baia, com um crachá pendurado no peito, quando o meu sonho é ser músico? Nada, nem o salário, nem o plano de previdência, nem o bônus de final de ano, vai conseguir me prender àquela cadeira ergonômica e giratória. Sem pensar duas vezes, entrarei na sala do meu chefe e lhe direi que estou largando tudo em nome da minha realização pessoal. Ele dirá que eu estou louco. Eu tomarei o insulto como elogio, e sairei da sala assobiando, com a confiança dos que ainda têm tudo pela frente.

Passarei a viver com pouco dinheiro, mas não vou me incomodar com isso, já que não verei mais diferença entre um guardanapo de pano ou de papel, um ingresso para a numerada ou para a geral. Ficarei horas de pé na calçada em frente ao boteco, tomando cerveja morna no copo de plástico e ouvindo o papo de meia dúzia de maconheiros, e acharei que tive uma noite incrível. Minha alma irá encher-se como uma esponja. Não terei mais medo de candidatos de esquerda, radicais livres e frituras. Me sentirei imortal, indestrutível e, de repente, vou achar que posso mudar o mundo. Já me vejo com a veia do pescoço saltada, tentando convencer os meus colegas de golfe a entrarem numa ONG pela libertação do Tibet. Serei ignorado e, a partir desse dia, só irei andar com a minha própria tribo.

Vou chegar em casa com o cabelo espetado e bastõezinhos de metal enfiados na língua e na orelha, e dizer para minha mulher que pô cara, o casamento miou, já era, não rola mais. A comodidade de estar com alguém que conhece todos os meus defeitos, e não se importa mais com eles, vai me parecer totalmente irrelevante. Que se foda a estabilidade emocional. Que se foda o gosto em comum pela tranca e pela pizza de massa fina. Eu vou querer é paixão, o peito arfante e a garganta seca, o pau arrebentando o zíper, madrugadas em claro trepando e rindo de bobagens e desenhando sombras na parede. Vou perder tudo que eu tenho no divórcio, serei chamado de imbecil pelos meus próprios filhos, e nem isso será capaz de arrancar o sorriso que estampará o meu rosto de têmpora a têmpora. E quando essa paixão acabar – hoje em dia nada dura mais que uma série de TV –, irei atrás de outras. Chegarei em dez, vinte mulheres na seqüência, e não me importarei de começar tudo de novo, de responder qual meu signo e meu ascendente, de pagar a conta e de levar para casa, desde que eu tenha a chance de pegar em uns peitinhos no final da noite.

Serei um ser incansável. Cruzarei o país na poltrona de um ônibus convencional só para correr atrás de um trio elétrico. Subirei montanhas com uma barraca nas costas só para ver paisagens diferentes. E então voltarei cheio de histórias para o conforto do meu lar. Um apê que dividirei com três marmanjos que nunca ouviram falar de uma vassoura. Mas quem se importa com a falta de conforto quando se tem o espírito leve e o coração pulsante?, eu perguntei para mim mesmo. Então tirei os olhos do espelho, fitei o imenso banheiro ao meu redor, pensei nos meus chinelos ao pé da cama, e arranquei, de um só golpe, o fio preto da minha cabeça.


De Giovana Madalosso.

sábado, 8 de novembro de 2008

Homossexualidade e outros pecados...

CRISTÃOS FUNDAMENTALISTAS são os que acreditam que as sagradas escrituras foram ditadas diretamente por Deus e que, por isso, tudo o que nelas está escrito é sagrado, verdadeiro e deve ser obrigatoriamente obedecido para sempre. A verdade divina está fora do tempo. Aquilo que Deus comandava há 3.000 anos é válido para hoje e para todos os tempos futuros.

Digo isso a propósito de uma carta dirigida a Laura Schlessinger, conhecida locutora de rádio nos Estados Unidos que tem um desses programas interativos que dá respostas e conselhos aos ouvintes que a chamam ao telefone. Recentemente, perguntada sobre a homossexualidade, a locutora disse que se trata de uma abominação, pois assim a Bíblia o afirma no livro de Levítico 18:22. Um ouvinte escreveu-lhe então uma carta que vou transcrever:

"Querida doutora Laura, muito obrigado por se esforçar tanto pra educar as pessoas segundo a lei de Deus. (...) Mas, de qualquer forma, necessito de alguns conselhos adicionais de sua parte a respeito de outras leis bíblicas e sobre a forma de cumpri-las: gostaria de vender minha filha como serva, tal como o indica o livro de Êxodo 21:7. Nos tempos em que vivemos, na sua opinião, qual seria o preço adequado?

O livro de Levítico 25:44 estabelece que posso possuir escravos, tanto homens quanto mulheres, desde que não sejam adquiridos de países vizinhos. Um amigo meu afirma que isso só se aplica aos mexicanos, mas não aos canadenses. Será que a senhora poderia esclarecer esse ponto? Por que não posso possuir canadenses?

Sei que não estou autorizado a ter qualquer contato com mulher alguma no seu período de impureza menstrual (Levítico 18:19, 20:18 etc.).O problema que se me coloca é o seguinte: como posso saber se as mulheres estão menstruadas ou não? Tenho tentado perguntar-lhes, mas muitas mulheres são tímidas e outras se sentem ofendidas.

Tenho um vizinho que insiste em trabalhar no sábado. O livro de Êxodo 35:2 claramente estabelece que quem trabalha aos sábados deve receber a pena de morte. Isso quer dizer que eu, pessoalmente, sou obrigado a matá-lo? Será que a senhora poderia, de alguma maneira, aliviar-me dessa obrigação aborrecida?

No livro de Levítico 21:18-21 está estabelecido que uma pessoa não pode se aproximar do altar de Deus se tiver algum defeito na vista. Preciso confessar que eu preciso de óculos para ver. Minha acuidade visual tem de ser 100% para que eu me aproxime do altar de Deus?

Eu sei, graças a Levítico 11:6-8, que quem tocar a pele de um porco morto fica impuro. Acontece que adoro jogar futebol americano, cujas bolas são feitas de pele de porco. Será que me será permitido continuar a jogar futebol americano se usar luvas?

Meu tio tem um sítio. Deixa de cumprir o que diz Levítico 19:19, pois que planta dois tipos diferentes de semente ao mesmo campo, e também deixa de cumprir a sua mulher, que usa roupas de dois tecidos diferentes -a saber, algodão e poliéster. Será que é necessário levar a cabo o complicado procedimento de reunir todas as pessoas da vila para apedrejá-la? Não poderíamos queimá-la numa reunião privada?

Sei que a senhora estudou esses assuntos com grande profundidade de forma que confio plenamente na sua ajuda. Obrigado de novo por recordar-nos que a palavra de Deus é eterna e imutável".


-Rubem Alves

Somos todos pós-modernos?

A resposta é sim se comungamos essa angústia, essa frustração frente aos sonhos idílicos da modernidade. Quem diria que a revolução russa terminaria em gulags, a chinesa em capitalismo de Estado e tantos partidos de esquerda assumiriam o poder como o violinista que pega o instrumento com a esquerda e toca com a direita?

Nenhum sistema filosófico resiste, hoje, à mercantilizaçã o da sociedade: a arte virou moda; a moda, improviso; o improviso, esperteza. As transgressões já não são exceções, e sim regras. O avanço da tecnologia, da informatização, da robótica, a gloogletização da cultura, a telecelularizaçã o das relações humanas, a banalização da violência, são fatores que nos mergulham em atitudes e formas de pensar pessimistas e provocadoras, anárquicas e conservadoras.

Na pós-modernidade, o sistemático cede lugar ao fragmentário, o homogêneo ao plural, a teoria ao experimental. A razão delira, fantasia-se de cínica, baila ao ritmo dos jogos de linguagem. Nesse mar revolto, muitos se apegam às "irracionalidades" do passado, à religiosidade sem teologia, à xenofobia, ao consumismo desenfreado, às emoções sem perspectivas.

Para os pós-modernos a história findou, o lazer se reduz ao hedonismo, a filosofia a um conjunto de perguntas sem respostas. O que importa é a novidade. Já não se percebe a distinção entre urgente e importante, acidental e essencial, valores e oportunidades, efêmero e permanente.

A estética se faz esteticismo; importa o adorno, a moldura, e não a profundidade ou o conteúdo. O pós-moderno é refém da exteriorização e dos estereótipos. Para ele, o agora é mais importante que o depois.

Para o pós-moderno, a razão vira racionalização, já não há pensamento crítico; ele prefere, neste mundo conflitivo, ser espectador e não protagonista, observador e não participante, público e não ator.

O pós-moderno duvida de tudo. É cartesianamente ortodoxo. Por isso não crê em algo ou em alguém. Distancia-se da razão crítica criticando-a. Como a serpente Uroboros, ele morde a própria cauda. E se refugia no individualismo narcísico. Basta-se a si mesmo, indiferente à dimensão social da existência.

O pós-moderno tudo desconstrói. Seus postulados são ambíguos, desprovidos de raízes, invertebrados, sensitivos e apáticos. Ao jornalismo, prefere o shownalismo.

O discurso pós-moderno é labiríntico, descarta paradigmas e grandes narrativas, e em sua bagagem cultural coloca no mesmo patamar Portinari e Felipe Massa; Guimarães Rosa e Paulo Coelho; Chico Buarque e Zeca Pagodinho.

O pós-modernismo não tem memória, abomina o ritual, o litúrgico, o mistério. Como considera toda paixão inútil, nem ri nem chora. Não há amor, há empatias. Sua visão de mundo deriva de cada subjetividade.

A ética da pós-modernidade detesta princípios universais. É a ética de ocasião, oportunidade, conveniência. Camaleônica, adapta-se a cada situação.

A pós-modernidade transforma a realidade em ficção e nos remete à caverna de Platão, onde nossas sombras têm mais importância que o nosso ser e as nossas imagens que a existência real.



Frei Betto - escritor, autor de "Calendário do Poder" (Rocco), entre outros livros.

O Sistema

De cada cem crianças que nascem vivas na Guatemala ou no Chile, morrem oito. Morrem oito também nos subúrbios populares de São Paulo, a cidade mais rica do Brasil. Acidente ou assassinato? Os criminosos têm a chave das prisões. Esta é uma violência sem tiros. Não serve para as novelas policiais. Aparece, congelada, nas estatísticas - quando aparece. Mas as guerras reais nem sempre são as mais espetaculares e bem se sabe que os relâmpagos dos tiros deixaram muita gente cega e surda.

A comida é mais cara no Chile que nos Estados Unidos: o salário mínimo, dez vezes mais baixo. A quarta parte dos chilenos não possui renda e sobrevive de teimosa. Os motoristas de táxis de Santiago já não compram dólares dos turistas: oferecem meninas que farão amor a troco de um jantar.

O consumo de sapatos se reduziu cinco vezes, no Uruguai, nos últimos vinte anos. Nos últimos sete, o consumo de leite em Montevidéu caiu pela metade.

Os presos da necessidade, quantos são? É livre um homem condenado a viver perseguindo o trabalho e a comida? Quantos têm o destino marcado na testa desde o dia em que apareceram ao mundo e choram pela primeira vez? A quantos se nega o sol e o sal?



- Conto extraído do livro "Dias e Noites de Amor e de Guerra", do escritor uruguaio Eduardo Galeano. Escrito na década de 70, mas bastante atual.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Primeiro texto?

Primeiro post.
Será que ele vai fazê-los voltar?
Provavelmente não.

Provavelmente não porque não estou aqui para falar as coisas que todo mundo quer ouvir, pelo menos não o tempo todo.

Provavelmente não porque pretendo questioná-lo acerca do seu papel na sociedade.
Não agora, mas no decorrer desse tempo que virá.

Para que estamos vivendo?
Para quem estamos vivendo?

Você sabe?
Você sabe pelo que viveria se pudesse viver pra sempre?

Eu sei.