segunda-feira, 20 de abril de 2009

Quem desorganiza a cidade?

Paulo Piramba

Como era de se esperar, a mídia e os candidatos conservadores vêm repetindo, nesta campanha, o discurso da desordem urbana, colocando como principais responsáveis os setores mais pobres da população. São eles que atravancam as calçadas com suas bancas de camelô, que atrapalham o trânsito com as vans piratas, que ocupam irregularmente as encostas, colocando em risco o meio ambiente. São eles que perambulam e cheiram cola nas esquinas, que se organizam em comandos levando a violência e o terror a toda a cidade. São os mesmos que jogam lixo e esgoto nos rios e lagoas e destroem a floresta. Este é o discurso oficial, ideologia barata que vêm sendo enfiada goela abaixo pelos meios de comunicação, em especial as Organizações Globo.

Desta forma, já era esperado – como, de fato, vem acontecendo – que nas entrevistas e debates, esta tal desordem fosse colocada no centro da discussão e brandida contra os candidatos da esquerda. Nas entrevistas, seja de forma mais simpática, ou procurando encostar os candidatos nas cordas, a preocupação dos apresentadores é, a partir da associação entre "desordem urbana" e ocupações nas encostas, questionar qual as propostas dos candidatos em relação à remoção de favelas.

Nos termos em que este ponto está sendo colocado, o time da esquerda vai sempre jogar no campo adversário e, conseqüentemente, na defensiva. Discutir problemas e soluções para questões originadas de uma avaliação com qual não concordamos, é cair na armadilha de quem insiste em vender, e dar ares de normalidade, a uma concepção de cidade restritiva, elitista e autoritária.

A verdadeira discussão é sobre quem é o responsável pelo caos urbano, ou melhor, sobre quem desorganiza a cidade. Nestas eleições, além de colocarmos na roda nossas propostas, é fundamental que a esquerda traga essa discussão para o centro do palco, apontando o real culpado. Ao invés de aceitarmos esta sabatina cínica e nos submetermos ao papel de administrador das mazelas do neoliberalismo e de despachante dos interesses das grandes empresas, temos que usar o espaço eleitoral para fazer alguns questionamentos incômodos aos conservadores e desconstruir falsas verdades.

Por que o Rio de Janeiro e sua população devem viver em função da ditadura do automóvel? Por que o consumismo e o desperdício devem ser tão cultuados e incentivados na nossa cidade? Por que o transporte coletivo da cidade deve ser tratado como uma ação entre amigos mafiosos, que impõem seus interesses em detrimento das necessidades da maioria da população? Por que a geografia e os pólos econômicos e produtivos da cidade podem ser redesenhados à vontade pela especulação imobiliária? Por que mansões e condomínios construídos nas encostas dos morros "preservam a natureza", enquanto as comunidades são uma ameaça ambiental? Por que serviços regulares de fornecimento de água e saneamento básico tornam-se mais raros, à medida que vão se distanciando das áreas nobres e a cor da pele da população vai enegrecendo? Por que superfaturar obras desnecessárias e deixar Saúde e Educação à míngua?

Por que manter enormes contingentes em situação de desemprego estrutural, tendo que "correr atrás" para sobreviver, enquanto milhões são destinados a projetos de desenvolvimento insustentável que ajudam a destruir ainda mais o meio ambiente e a saúde das populações que vivem no seu em torno? Por que reclamar do aumento da violência gerado por estas situações, quando a cidade está organizada para perpetuar a miséria, a fome e a exclusão? Como podemos falar em ordem urbana, se ela traz o caos e barbárie para a maioria de sua população, segregando-a e tornando-a cada vez mais miserável e despossuída do acesso aos serviços mais básicos? Por que continua a destruição das áreas verdes da cidade, assim como a impermeabilização do solo e a emissão dos gases formadores do efeito estufa, como se as mudanças climáticas não fossem atingir a nossa cidade?

Quem desorganiza a cidade é o neoliberalismo, dissociando a cidade de seu espaço físico, do meio ambiente onde ela está colocada e, principalmente, da maioria de seus habitantes. As favelas, as vans, as ocupações urbanas, o comércio informal dos camelôs, os gatos de água e luz, não devem ser vistos como instrumentos da desordem urbana, mas como formas de resistência ao caos e barbárie neoliberal. São soluções limitadas e, por isso, imperfeitas, mas que apontam para a existência de uma outra cidade, que resiste ao avanço da criminalização e da responsabilização dos pobres e dos movimentos sociais por tudo que existe de negativo na cidade, mesmo que não lhes caiba nenhuma responsabilidade. Os futuros governos da esquerda devem estabelecer novas relações com esta população, dando-lhe voz e poder, e sendo parceiro em uma grande reforma urbana ecológica e socialista que o Rio tanto precisa.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Quem deu a Israel o direito de negar todos os direitos?

Este artigo é dedicado a meus amigos judeus assassinados pelas ditaduras latinoamericanas que Israel assessorou.

Para justificar-se, o terrorismo de estado fabrica terroristas: semeia ódio e colhe pretextos. Tudo indica que esta carnificina de Gaza, que segundo seus autores quer acabar com os terroristas, acabará por multiplicá-los.

Desde 1948, os palestinos vivem condenados à humilhação perpétua. Não podem nem respirar sem permissão. Perderam sua pátria, suas terras, sua água, sua liberdade, seu tudo. Nem sequer têm direito a eleger seus governantes. Quando votam em quem não devem votar são castigados. Gaza está sendo castigada. Converteu-se em uma armadilha sem saída, desde que o Hamas ganhou limpamente as eleições em 2006. Algo parecido havia ocorrido em 1932, quando o Partido Comunista triunfou nas eleições de El Salvador. Banhados em sangue, os salvadorenhos expiaram sua má conduta e, desde então, viveram submetidos a ditaduras militares. A democracia é um luxo que nem todos merecem.

São filhos da impotência os foguetes caseiros que os militantes do Hamas, encurralados em Gaza, disparam com desajeitada pontaria sobre as terras que foram palestinas e que a ocupação israelense usurpou. E o desespero, à margem da loucura suicida, é a mãe das bravatas que negam o direito à existência de Israel, gritos sem nenhuma eficácia, enquanto a muito eficaz guerra de extermínio está negando, há muitos anos, o direito à existência da Palestina.

Já resta pouca Palestina. Passo a passo, Israel está apagando-a do mapa. Os colonos invadem, e atrás deles os soldados vão corrigindo a fronteira. As balas sacralizam a pilhagem, em legítima defesa.

Não há guerra agressiva que não diga ser guerra defensiva. Hitler invadiu a Polônia para evitar que a Polônia invadisse a Alemanha. Bush invadiu o Iraque para evitar que o Iraque invadisse o mundo. Em cada uma de suas guerras defensivas, Israel devorou outro pedaço da Palestina, e os almoços seguem. O apetite devorador se justifica pelos títulos de propriedade que a Bíblia outorgou, pelos dois mil anos de perseguição que o povo judeu sofreu, e pelo pânico que geram os palestinos à espreita.

Israel é o país que jamais cumpre as recomendações nem as resoluções das Nações Unidas, que nunca acata as sentenças dos tribunais internacionais, que burla as leis internacionais, e é também o único país que legalizou a tortura de prisioneiros.

Quem lhe deu o direito de negar todos os direitos? De onde vem a impunidade com que Israel está executando a matança de Gaza? O governo espanhol não conseguiu bombardear impunemente ao País Basco para acabar com o ETA, nem o governo britânico pôde arrasar a Irlanda para liquidar o IRA. Por acaso a tragédia do Holocausto implica uma apólice de eterna impunidade? Ou essa luz verde provém da potência manda chuva que tem em Israel o mais incondicional de seus vassalos?

O exército israelense, o mais moderno e sofisticado mundo, sabe a quem mata. Não mata por engano. Mata por horror. As vítimas civis são chamadas de "danos colaterais", segundo o dicionário de outras guerras imperiais. Em Gaza, de cada dez "danos colaterais", três são crianças. E somam aos milhares os mutilados, vítimas da tecnologia do esquartejamento humano, que a indústria militar está ensaiando com êxito nesta operação de limpeza étnica.

E como sempre, sempre o mesmo: em Gaza, cem a um. Para cada cem palestinos mortos, um israelense. Gente perigosa, adverte outro bombardeio, a cargo dos meios massivos de manipulação, que nos convidam a crer que uma vida israelense vale tanto quanto cem vidas palestinas. E esses meios também nos convidam a acreditar que são humanitárias as duzentas bombas atômicas de Israel, e que uma potência nuclear chamada Irã foi a que aniquilou Hiroshima e Nagasaki.

A chamada "comunidade internacional", existe? É algo mais que um clube de mercadores, banqueiros e guerreiros? É algo mais que o nome artístico que os Estados Unidos adotam quando fazem teatro?

Diante da tragédia de Gaza, a hipocrisia mundial se ilumina uma vez mais. Como sempre, a indiferença, os discursos vazios, as declarações ocas, as declamações altissonantes, as posturas ambíguas, rendem tributo à sagrada impunidade.

Diante da tragédia de Gaza, os países árabes lavam as mãos. Como sempre. E como sempre, os países europeus esfregam as mãos. A velha Europa, tão capaz de beleza e de perversidade, derrama alguma que outra lágrima, enquanto secretamente celebra esta jogada de mestre. Porque a caçada de judeus foi sempre um costume europeu, mas há meio século essa dívida histórica está sendo cobrada dos palestinas, que também são semitas e que nunca foram, nem são, antisemitas. Eles estão pagando, com sangue constante e sonoro, uma conta alheia.

(*) Texto publicado originalmente no jornal Brecha. (Tradução: Katarina Peixoto)