segunda-feira, 20 de abril de 2009

Quem desorganiza a cidade?

Paulo Piramba

Como era de se esperar, a mídia e os candidatos conservadores vêm repetindo, nesta campanha, o discurso da desordem urbana, colocando como principais responsáveis os setores mais pobres da população. São eles que atravancam as calçadas com suas bancas de camelô, que atrapalham o trânsito com as vans piratas, que ocupam irregularmente as encostas, colocando em risco o meio ambiente. São eles que perambulam e cheiram cola nas esquinas, que se organizam em comandos levando a violência e o terror a toda a cidade. São os mesmos que jogam lixo e esgoto nos rios e lagoas e destroem a floresta. Este é o discurso oficial, ideologia barata que vêm sendo enfiada goela abaixo pelos meios de comunicação, em especial as Organizações Globo.

Desta forma, já era esperado – como, de fato, vem acontecendo – que nas entrevistas e debates, esta tal desordem fosse colocada no centro da discussão e brandida contra os candidatos da esquerda. Nas entrevistas, seja de forma mais simpática, ou procurando encostar os candidatos nas cordas, a preocupação dos apresentadores é, a partir da associação entre "desordem urbana" e ocupações nas encostas, questionar qual as propostas dos candidatos em relação à remoção de favelas.

Nos termos em que este ponto está sendo colocado, o time da esquerda vai sempre jogar no campo adversário e, conseqüentemente, na defensiva. Discutir problemas e soluções para questões originadas de uma avaliação com qual não concordamos, é cair na armadilha de quem insiste em vender, e dar ares de normalidade, a uma concepção de cidade restritiva, elitista e autoritária.

A verdadeira discussão é sobre quem é o responsável pelo caos urbano, ou melhor, sobre quem desorganiza a cidade. Nestas eleições, além de colocarmos na roda nossas propostas, é fundamental que a esquerda traga essa discussão para o centro do palco, apontando o real culpado. Ao invés de aceitarmos esta sabatina cínica e nos submetermos ao papel de administrador das mazelas do neoliberalismo e de despachante dos interesses das grandes empresas, temos que usar o espaço eleitoral para fazer alguns questionamentos incômodos aos conservadores e desconstruir falsas verdades.

Por que o Rio de Janeiro e sua população devem viver em função da ditadura do automóvel? Por que o consumismo e o desperdício devem ser tão cultuados e incentivados na nossa cidade? Por que o transporte coletivo da cidade deve ser tratado como uma ação entre amigos mafiosos, que impõem seus interesses em detrimento das necessidades da maioria da população? Por que a geografia e os pólos econômicos e produtivos da cidade podem ser redesenhados à vontade pela especulação imobiliária? Por que mansões e condomínios construídos nas encostas dos morros "preservam a natureza", enquanto as comunidades são uma ameaça ambiental? Por que serviços regulares de fornecimento de água e saneamento básico tornam-se mais raros, à medida que vão se distanciando das áreas nobres e a cor da pele da população vai enegrecendo? Por que superfaturar obras desnecessárias e deixar Saúde e Educação à míngua?

Por que manter enormes contingentes em situação de desemprego estrutural, tendo que "correr atrás" para sobreviver, enquanto milhões são destinados a projetos de desenvolvimento insustentável que ajudam a destruir ainda mais o meio ambiente e a saúde das populações que vivem no seu em torno? Por que reclamar do aumento da violência gerado por estas situações, quando a cidade está organizada para perpetuar a miséria, a fome e a exclusão? Como podemos falar em ordem urbana, se ela traz o caos e barbárie para a maioria de sua população, segregando-a e tornando-a cada vez mais miserável e despossuída do acesso aos serviços mais básicos? Por que continua a destruição das áreas verdes da cidade, assim como a impermeabilização do solo e a emissão dos gases formadores do efeito estufa, como se as mudanças climáticas não fossem atingir a nossa cidade?

Quem desorganiza a cidade é o neoliberalismo, dissociando a cidade de seu espaço físico, do meio ambiente onde ela está colocada e, principalmente, da maioria de seus habitantes. As favelas, as vans, as ocupações urbanas, o comércio informal dos camelôs, os gatos de água e luz, não devem ser vistos como instrumentos da desordem urbana, mas como formas de resistência ao caos e barbárie neoliberal. São soluções limitadas e, por isso, imperfeitas, mas que apontam para a existência de uma outra cidade, que resiste ao avanço da criminalização e da responsabilização dos pobres e dos movimentos sociais por tudo que existe de negativo na cidade, mesmo que não lhes caiba nenhuma responsabilidade. Os futuros governos da esquerda devem estabelecer novas relações com esta população, dando-lhe voz e poder, e sendo parceiro em uma grande reforma urbana ecológica e socialista que o Rio tanto precisa.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Quem deu a Israel o direito de negar todos os direitos?

Este artigo é dedicado a meus amigos judeus assassinados pelas ditaduras latinoamericanas que Israel assessorou.

Para justificar-se, o terrorismo de estado fabrica terroristas: semeia ódio e colhe pretextos. Tudo indica que esta carnificina de Gaza, que segundo seus autores quer acabar com os terroristas, acabará por multiplicá-los.

Desde 1948, os palestinos vivem condenados à humilhação perpétua. Não podem nem respirar sem permissão. Perderam sua pátria, suas terras, sua água, sua liberdade, seu tudo. Nem sequer têm direito a eleger seus governantes. Quando votam em quem não devem votar são castigados. Gaza está sendo castigada. Converteu-se em uma armadilha sem saída, desde que o Hamas ganhou limpamente as eleições em 2006. Algo parecido havia ocorrido em 1932, quando o Partido Comunista triunfou nas eleições de El Salvador. Banhados em sangue, os salvadorenhos expiaram sua má conduta e, desde então, viveram submetidos a ditaduras militares. A democracia é um luxo que nem todos merecem.

São filhos da impotência os foguetes caseiros que os militantes do Hamas, encurralados em Gaza, disparam com desajeitada pontaria sobre as terras que foram palestinas e que a ocupação israelense usurpou. E o desespero, à margem da loucura suicida, é a mãe das bravatas que negam o direito à existência de Israel, gritos sem nenhuma eficácia, enquanto a muito eficaz guerra de extermínio está negando, há muitos anos, o direito à existência da Palestina.

Já resta pouca Palestina. Passo a passo, Israel está apagando-a do mapa. Os colonos invadem, e atrás deles os soldados vão corrigindo a fronteira. As balas sacralizam a pilhagem, em legítima defesa.

Não há guerra agressiva que não diga ser guerra defensiva. Hitler invadiu a Polônia para evitar que a Polônia invadisse a Alemanha. Bush invadiu o Iraque para evitar que o Iraque invadisse o mundo. Em cada uma de suas guerras defensivas, Israel devorou outro pedaço da Palestina, e os almoços seguem. O apetite devorador se justifica pelos títulos de propriedade que a Bíblia outorgou, pelos dois mil anos de perseguição que o povo judeu sofreu, e pelo pânico que geram os palestinos à espreita.

Israel é o país que jamais cumpre as recomendações nem as resoluções das Nações Unidas, que nunca acata as sentenças dos tribunais internacionais, que burla as leis internacionais, e é também o único país que legalizou a tortura de prisioneiros.

Quem lhe deu o direito de negar todos os direitos? De onde vem a impunidade com que Israel está executando a matança de Gaza? O governo espanhol não conseguiu bombardear impunemente ao País Basco para acabar com o ETA, nem o governo britânico pôde arrasar a Irlanda para liquidar o IRA. Por acaso a tragédia do Holocausto implica uma apólice de eterna impunidade? Ou essa luz verde provém da potência manda chuva que tem em Israel o mais incondicional de seus vassalos?

O exército israelense, o mais moderno e sofisticado mundo, sabe a quem mata. Não mata por engano. Mata por horror. As vítimas civis são chamadas de "danos colaterais", segundo o dicionário de outras guerras imperiais. Em Gaza, de cada dez "danos colaterais", três são crianças. E somam aos milhares os mutilados, vítimas da tecnologia do esquartejamento humano, que a indústria militar está ensaiando com êxito nesta operação de limpeza étnica.

E como sempre, sempre o mesmo: em Gaza, cem a um. Para cada cem palestinos mortos, um israelense. Gente perigosa, adverte outro bombardeio, a cargo dos meios massivos de manipulação, que nos convidam a crer que uma vida israelense vale tanto quanto cem vidas palestinas. E esses meios também nos convidam a acreditar que são humanitárias as duzentas bombas atômicas de Israel, e que uma potência nuclear chamada Irã foi a que aniquilou Hiroshima e Nagasaki.

A chamada "comunidade internacional", existe? É algo mais que um clube de mercadores, banqueiros e guerreiros? É algo mais que o nome artístico que os Estados Unidos adotam quando fazem teatro?

Diante da tragédia de Gaza, a hipocrisia mundial se ilumina uma vez mais. Como sempre, a indiferença, os discursos vazios, as declarações ocas, as declamações altissonantes, as posturas ambíguas, rendem tributo à sagrada impunidade.

Diante da tragédia de Gaza, os países árabes lavam as mãos. Como sempre. E como sempre, os países europeus esfregam as mãos. A velha Europa, tão capaz de beleza e de perversidade, derrama alguma que outra lágrima, enquanto secretamente celebra esta jogada de mestre. Porque a caçada de judeus foi sempre um costume europeu, mas há meio século essa dívida histórica está sendo cobrada dos palestinas, que também são semitas e que nunca foram, nem são, antisemitas. Eles estão pagando, com sangue constante e sonoro, uma conta alheia.

(*) Texto publicado originalmente no jornal Brecha. (Tradução: Katarina Peixoto)

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Minha contribuição

O texto que se segue é um pouco extenso, entretanto considero uma leitura fundamental para qualquer pessoa que se diz socialista ou defensora dos direitos LGBTTT.

Se você não se enquadra em nenhuma das opções acima, mas é contra guerras, exploração, miséria, fome, degradação do meio ambiente, racismo, sexismo, homofobia, violência e qualquer tipo de opressão... esse também é um ótimo texto pra você.

Boa leitura.

Gays, Lésbicas e o Socialismo

Por Noel Hallifax


As paradas do “orgulho gay” vêm se consolidado como um evento político importante em todos os cantos do mundo. São manifestações que tiveram início há 30 anos, como atos de afirmação da sexualidade gay e lésbica, chamando a atenção para um tema que ainda é considerado tabu e tratado com desprezo e preconceito. Além das “Paradas do Orgulho Gay”, a realização de outros tipos de manifestação, a realização de campanhas tem sido importantes na luta contra a homofobia. Cada vez mais pessoas deixam de ver a homossexualidade como uma “aberração” ou “doença”, e leis que reconhecem a união entre pessoas do mesmo sexo têm se tornado cada vez mais comuns. Apesar disso, as conquistas ainda representam pouquíssimo diante dos graves problemas que gays, lésbicas, bissexuais e travestis enfrentam: expondo-se cotidianamente não só a atitudes preconceituosas, chacotas, perseguições e discriminação, mas à violência física e repressão policial.

Alguns problemas contribuem para esse avanço limitado. É interessante compararmos com outros movimentos, como o das mulheres, para que se tenha uma idéia mais clara. A luta pelos direitos das mulheres é antiga, e ao longo do tempo ela extrapolou os limites dos movimentos feministas, para se incorporar às lutas dos movimentos sociais e as plataformas de partidos políticos. Hoje em dia a maioria dos sindicatos possui comissões de mulheres, e muitas organizações, como a CUT, adotam o sistema de cotas para mulheres. E aqui não importa o juízo que se tenha sobre o sistema de cotas – o fundamental é o fato de que a luta das mulheres ganhou amplitude. Do mesmo modo, os debates e discussões sobre os problemas referentes Às mulheres e seus direitos, estão amplamente disseminados. É obvio que apesar disso essa luta está distante de ter alcançado ume estágio condizente com as suas necessidades. Mas, dentre os movimentos dos setores oprimidos, é o que se encontra em um grau mais avançado de organização, debate e mobilização. A situação dos movimentos contra a discriminação racial é bastante diferente. Embora nos últimos anos a questão racial venha conquistando um espaço cada vez maior na agenda política, a luta contra o racismo no Brasil ainda engatinha.

O grau de organização e luta dos gays, lésbicas e travestis é, infelizmente, baixíssimo. Os debates sobre a homofobia, os direitos dos gays e lésbicas ainda estão distantes dos movimentos sociais e das organizações da chamada “sociedade civil”. Pelo contrario, mesmo nesses setores, pode-se contatar a disseminação do preconceito e a subestimação dessa luta, a qual é tão importante quanto as lutas das mulheres, negros e outras vítimas de opressão.

Em grande medida, isso reflete a falta de compreensão do próprio problema da opressão. Em geral, há uma tendência a ver a de “atitude”, de “conscientização”, etc. Embora não se possa negar a importância das campanhas de esclarecimento, das ações judiciais movidas por vítimas de discriminação, dos lobbies organizados por entidades gays, a opressão não pode ser reduzida a um problema de “atitude”, de “idéias” ou comportamento. Da mesma forma que o machismo e o racismo, a opressão está enraizada em um sistema que necessita da opressão e a reproduz constantemente em suas variadas formas. E qualquer combate conseqüente contra a opressão precisa ser radical, isto é, necessita ir à raiz do problema.

A publicação deste caderno pretende ser uma contribuição a esse debate. Embora sua elaboração date de 1988, os seus argumentos são atuais e proporcionam elementos importantes para se compreender as bases materiais reais da opressão gay e para se discutir os caminhos possíveis para a sua superação. Está é, afinal, uma luta não só dos homossexuais, lésbicas, travestis e bissexuais, mas de todos nós que lutamos por uma sociedade igualitária e fraterna.

Qualquer pessoa que defenda a libertação gay enfrenta o velho clichê de que a homossexualidade é contrária à natureza humana. Essa crença em uma natureza humana estática, determinada pela nossa estrutura genética e os nossos instintos, é o mito mais popular utilizado para justificar a opressão sobre os homossexuais.

A primeira questão que deve ser enfrentada é a idéia de que lésbicas ou gays são “pervertidos”, “desviados”, “anormais”. Mesmo uma pesquisa superficial de diferentes sociedades mostra enormes variações no que é considerado “normal”. A sexualidade não é biologicamente definida, mas socialmente determinada. E a sua definição tem sofrido enormes mudanças através da história.

Muitas sociedades consideravam a homossexualidade “normal”. O exemplo mais conhecido é a Grécia Antiga. O amor entre os homens era idealizado na arte e na poesia grega. A mitologia grega está cheia de história de amor de gays e lésbicas. A história de Adônis e Narciso, por exemplo, fala de um deus que cai na luxúria e persegue belos jovens. O culto a Adônis dispunha de templos e festivais dedicados a celebrar e promover relações gays. Na sociedade grega um homem que se apaixonasse e tivesse relações sexuais com outro homem era visto como um ser perfeitamente normal.

Isso não deve levar-nos a crer que a sociedade grega era um paraíso sem opressão. Era uma sociedade baseada na escravidão, na qual a grande maioria da população era formada por escravos que eram propriedade de cidadãos livres. Os escravos não possuíam nenhum direito, eram criados como diferentes raças de animais para diferentes funções – escravos robustos para trabalhos pesados, outros para trabalhos domésticos, e assim por diante.

Além do mais, as mulheres possuíam um status tão baixo que os homens pensavam que era quase impossível para um homem e uma mulher terem uma relação amorosa de igual para igual – as mulheres serviam para cuidar da casa e das crianças, e o amor era destinado aos rapazes. Era uma sociedade extremamente opressiva. Na cidade estado de Esparta, o amor dentre jovens e homens era um aspecto permanente e importante em seu exército. Um guerreiro treinava um jovem na arte da guerra, num aprendizado longo e árduo. A relação entre o guerreiro e o seu aprendiz era próxima e vital, e sua importância era tão grande que os planos de batalha do exercito espartano eram feitos com base nessa relação.

A casta guerreira do Japão feudal – os samurais – nutria idéias semelhantes às dos espartanos, refletidas em poemas e historias de amor homossexual.

Assim, não há nada de pervertido no amor gay. A sua existência pode ser constatada em quase todas as sociedades, mesmo naquelas que o proíbem veementemente. O amor entre pessoas do mesmo sexo é um aspecto comum da sexualidade humana. O que precisa ser explicado é porque em algumas sociedades esse amor é vítima de opressão.

Os utópicos

O primeiro movimento socialista na Grã-Bretanha – dos socialistas utópicos – data do final do século 18 ate a primeira metade do século 19. Esse movimento coincidiu com o movimento cartista, primeiro movimento operário da Grã-Bretanha, sobre o qual tiveram uma influencia significativa.

Os socialistas utópicos não só tinham consciência da opressão sexual como também colocavam esta questão no centro de sua política. Enfatizavam em particular a necessidade de as mulheres terem liberdade de desfrutar a sua sexualidade. Defendiam firmemente a libertação sexual, embora não tivessem uma idéia clara das causas da opressão sexual. A explicação mais popular era a da ignorância: as mentes das pessoas estavam cheias de idéias erradas, implantadas pela Igreja. A batalha contra a opressão sexual era, portanto, uma batalha contra idéias equivocadas.

Isso os levou a suas estratégias complementares e igualmente desfocadas. A primeira era apelar a capitalistas esclarecidos para apoiá-los. Como as suas idéias estavam baseadas na razão, a força do argumento seria suficiente para conseguir o apoio de capitalistas influentes. Não surpreende que tenham atraído poucos colaboradores.

Outros viram a saída na “propaganda dos atos” – vivendo no ‘aqui e agora’ as idéias de uma sociedade futura. Isso levou muitas pessoas a estabelecerem comunidades e outras experiências de vida não monogâmicas. A grande maioria dessas idéias falhou. O seu maior fracasso foi não conseguir oferecer nenhuma alternativa à família para a grande maioria dos trabalhadores. Há muito mais na opressão sexual do que idéias equivocadas, e as restrições materiais que a maioria dos trabalhadores sofre não podem ser simplesmente eliminadas pela força na nossa vontade.

As raízes da opressão

Ao mesmo tempo em que os socialistas utópicos tinham idéias interessantes para escapar individualmente da opressão sexual, eles não podiam explicar porque essa opressão era predominante, nem como combatê-la. Apenas quando Engels escreveu A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado em 1884 tornou-se possível explicar cientificamente as raízes da opressão sexual. E somente então tornou-se possível ver como poderia ser eliminada.

Engels viu que a base da opressão das mulheres e do sexismo era a família, o núcleo básico da sociedade que estruturava e determinava a posição desigual das mulheres. Analisando diferentes formas de família em diferentes tipos de sociedade, ele mostrou que a família havia mudado fundamentalmente de um estágio de sociedade para outro. A monogamia não era um instinto “natural” e “biológico”, mas um produto da forma como a sociedade estava organizada. Utilizando o trabalho de antropólogos, ele buscou as raízes da família no surgimento das classes na sociedade humana.

Conforme as sociedades passaram a produzir mais do que o necessário para o próprio sustento, o surgimento da propriedade privada acarretou uma divisão da sociedade em classes desiguais. Uma minoria possuía a maior parte da riqueza da sociedade enquanto a maioria possuía pouco ou nada. O surgimento dos direitos de propriedade também trouxe uma mudança fundamental nas relações entre homens e mulheres. A divisão de trabalho anterior (com as mulheres como cultivadoras e os homens como caçadores e pastores) conferia uma posição elevada às mulheres, uma vez que, para sobreviver, a sociedade dependia primeiramente dos alimentos que elas produziam. A nova divisão tornou-se profundamente desigual, já que a minoria que formava a classe dos proprietários era formada praticamente por homens. O casamento torna-se monogâmico porque os homens que controlavam as propriedades buscavam transmiti-las aos seus filhos, e para isso eles precisavam saber quem eram eles.

Para Engels, o fim da linhagem materna (o reconhecimento da descendência através da mãe) marcou a “derrota histórica do sexo feminino”. Ele afirmou que: “O primeiro antagonismo de classes que aparece na historia coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre homens e mulheres no casamento monogâmico, e a primeira opressão de classe coincide com a opressão do sexo feminino pelo masculino” (F. Engels A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado).

A propriedade privada também deu lugar às primeiras formas primitivas do estado enquanto um órgão de coerção que assegurava o domínio da minoria sobre a maioria despossuída, ao qual foi incorporado um conjunto de estruturas legais reforçando a posição subalterna das mulheres.

Atualmente, sabe-se muito mais sobre as sociedades primitivas do que na época de Engels, e reconhece-se que muitas das suas descrições dessas sociedades são erradas. O processo pelo qual a sociedade de classes foi formada foi muito mais desigual e complexo do que pensava Engels. Muitos dos detalhes de sua obra foram tomados de sociedades que não eram típicas. Apesar dessas debilidades, o ponto central de sua analise – de que a família e a opressão das mulheres eram produtos da sociedade de classes – permanece válido.

O objetivo de Engels era mostrar que a opressão sexual não era uma característica permanente e imutável da historia humana, mas havia se desenvolvido em resposta às mudanças na forma em que a sociedade estava organizada. O que os seres humanos haviam criado, os serem humanos podiam destruir. A opressão sexual poderia ser erradicada, mas somente mudando a organização da própria sociedade. A família está tão profundamente enraizada na sociedade de classes que ela só pode ser desarraigada pela destruição da sociedade de classes – pela vitória do socialismo.
Para entendermos como a família e a opressão feminina produziram a opressão gay é necessário que vejamos como a família transformou-se fundamentalmente sob o capitalismo. O capitalismo é, dentro todas as formas de sociedade de classes, a mais dinâmica e revolucionaria, uma sociedade que só pode progredir mudando e expandindo constantemente a sua base econômica. Como Marx e Engels escreveram em O Manifesto Comunista:

“A constante revolução da produção, a perturbação ininterrupta de todas as condições sociais, a incerteza e a agitação perpétuas distinguem a época burguesa de todas as anteriores. Todas as relações fixas, com o seu trem de preconceitos antigos e veneráveis, são varridas, todas as recém-formadas se tornam antiquadas antes que possam se ossificar.”

O que é verdadeiro para a sociedade como um todo também o é para a família. O processo inicial de industrialização destroçou a família operária tal como existia, destruindo a sua base como uma unidade de produção. Mulheres, homens e crianças, foram todos lançados nos novos moinhos e fábricas, não como membros de uma família, mas como trabalhadores igualmente “livres”. Ainda na década de 1840, a maioria dos trabalhadores das fábricas na Grã-Bretanha eram mulheres e crianças. As horríveis condições de vida e de trabalho que sofreram, destruíram qualquer aparência de uma vida familiar normal. E o acesso das mulheres a meios de sobrevivência independentes permitiu a muitas delas escaparem da necessidade de se casarem. Isso levou muitos, inclusive Marx e Engels, a prever a morte da família operária.

Na realidade, a família não só sobreviveu, mas floresceu – mas numa forma muito diferente. O capitalismo dependia de uma oferta ininterrupta de mão-de-obra, e aqueles que dirigiam o sistema passaram a ver cada vez mais a família como sendo o melhor meio de assegurar-lhes isso praticamente sem qualquer custo para eles próprios. A partir de meados do século XIX, houve tentativas conscientes de reconstruir uma vida familiar estável para as classes trabalhadoras. Em parte, isso implicou na gradual exclusão das mulheres e crianças de certas áreas de trabalho e no pagamento de um “salário-família” para alguns trabalhadores. As mulheres foram excluídas, em particular, daquelas industrias que colocavam em risco a sua capacidade de gerar filhos.

A família era necessária, em primeiro lugar, para reproduzir diariamente a capacidade dos trabalhadores para o trabalho – para alimentá-los, vesti-los e abrigá-los para que pudessem continuar a produzir mais-valia para os capitalistas. Mais importante, era também necessária como um meio para produzir futuras gerações de trabalhadores. Isso essência do núcleo familiar significava não só a produção física de crianças, mas também o seu treinamento social e ideológico, para produzir uma força de trabalho saudável, educada e submissão. Tal era o ideal da vida familiar.

Na prática, esse ideal quase nunca era realizado plenamente. Muitos capitalistas não pagavam um salário familiar adequado, e muitas mulheres continuavam a trabalhar em tempo integral ou parcial. Mas uma ampla gama de controles sociais, econômicos e ideológicos foram usados para impor a nova família à classe trabalhadora. Isso funcionou porque muitos trabalhadores, homens e mulheres, saudaram essa imposição. A família nuclear pareceu ser a única alternativa ao pesadelo de todos os membros da família trabalharem 12 horas por dia em troca de uma miséria e em condições brutalmente insalubres e perigosas.

Por fim, a família proporcionou aos seus membros a ilusão de terem um grau de controle sobre uma parte de suas vidas, um paraíso dentro de um mundo cruel. Contudo o restabelecimento da família nuclear assegurou a continuidade da opressão das mulheres.

A família tornou-se assim uma área de vida “privada” separada da esfera publica da produção, mas uma área ordenada e controlada pelo capitalismo. Na medida em que a família nuclear se tornou cada vez mais importante para o capitalismo, também tornou-se cada ver mais importante apresentá-la como sendo a única forma possível de via e assegurar que as divisões sexuais que isso acarretava fossem passadas às futuras gerações de trabalhadores. A família, em outras palavras, tornou-se um meio não só de controle social sobre os trabalhadores, mas também um controle ideológico.

São esses controles que são colocados em xeque pela simples existência de gays e lésbicas. A sexualidade gay desafia a idéia da família monogâmica como o único modo de vida possível – também desafia a idéia de que o sexo seja apenas para a reprodução. A sexualidade tornou-se não uma questão privada regulada pelas tradições e preconceitos da comunidade, como havia sido nas sociedades pré-capitalistas, mas um problema publico para o Estado regular e restringir.

Essa restrição tornou-se duplamente importante porque o desenvolvimento do capitalismo também criou as condições para formas muito mais amplas de expressão da sexualidade – pelo menos para uma minoria. A destruição das velhas comunidades de vilarejos, e com isso a quebra da fortaleza da Igreja, a possibilidade dos jovens escaparem da família pelo acesso ao trabalho assalariado e o anonimato das grandes cidades – tudo isso ajudou a criar as condições nas quais se tornou muito mais possível o desenvolvimento e o florescimento da sexualidade gay.

A resposta do Estado foi reprimir qualquer sexualidade “desviada” através de uma serie de leis repressivas e condenações judiciais exemplares designadas para forçar os gays e lésbicas a permanecerem nos porões da sociedade. A sociedade passou a definir o que era um comportamento sexual “normal”, ao mesmo tempo em que criou o “homossexual” como um tipo social. São sempre os opressores que definem os oprimidos, embora freqüentemente os oprimidos assumam os rótulos e símbolos de sua opressão como sinas de força e orgulho.

A opressão gay existiu em sociedades pré-capitalistas com um grau altamente variado de repressão e selvageria. Outras aceitaram o amor gay ao lado da heterossexualidade. Foi somente com o advento do capitalismo que a opressa gay tornou-se sistematizada como uma defesa necessária da família nuclear. Mas o capitalismo também criou possibilidades muito maiores do qualquer sociedade anterior para as pessoas realizarem e viverem suas sexualidades. Pela primeira vez na historia era possível lutar pela libertação gay.

A tradição Marxista

A tradição marxista não começou e terminou com Engels. Desde o século 19 e através do século 20, houve uma tradição de luta e organização contra a opressão sexual, incluindo a opressa gay. Foi uma tradição que terminou em 1934, esquecida ou deliberadamente apagada da historia ate a sua redescoberta no final da década de 60. Essa falsificação deliberada da historia foi em grande medida a obra dos Partidos Comunistas oficiais. Hoje, essa mesma tradição é em grande medida ignorada pelo movimento gay. Muitos socialistas e a maior parte do movimento gay desconhecem, portanto, a sua própria história.