quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

As raízes da opressão

Ao mesmo tempo em que os socialistas utópicos tinham idéias interessantes para escapar individualmente da opressão sexual, eles não podiam explicar porque essa opressão era predominante, nem como combatê-la. Apenas quando Engels escreveu A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado em 1884 tornou-se possível explicar cientificamente as raízes da opressão sexual. E somente então tornou-se possível ver como poderia ser eliminada.

Engels viu que a base da opressão das mulheres e do sexismo era a família, o núcleo básico da sociedade que estruturava e determinava a posição desigual das mulheres. Analisando diferentes formas de família em diferentes tipos de sociedade, ele mostrou que a família havia mudado fundamentalmente de um estágio de sociedade para outro. A monogamia não era um instinto “natural” e “biológico”, mas um produto da forma como a sociedade estava organizada. Utilizando o trabalho de antropólogos, ele buscou as raízes da família no surgimento das classes na sociedade humana.

Conforme as sociedades passaram a produzir mais do que o necessário para o próprio sustento, o surgimento da propriedade privada acarretou uma divisão da sociedade em classes desiguais. Uma minoria possuía a maior parte da riqueza da sociedade enquanto a maioria possuía pouco ou nada. O surgimento dos direitos de propriedade também trouxe uma mudança fundamental nas relações entre homens e mulheres. A divisão de trabalho anterior (com as mulheres como cultivadoras e os homens como caçadores e pastores) conferia uma posição elevada às mulheres, uma vez que, para sobreviver, a sociedade dependia primeiramente dos alimentos que elas produziam. A nova divisão tornou-se profundamente desigual, já que a minoria que formava a classe dos proprietários era formada praticamente por homens. O casamento torna-se monogâmico porque os homens que controlavam as propriedades buscavam transmiti-las aos seus filhos, e para isso eles precisavam saber quem eram eles.

Para Engels, o fim da linhagem materna (o reconhecimento da descendência através da mãe) marcou a “derrota histórica do sexo feminino”. Ele afirmou que: “O primeiro antagonismo de classes que aparece na historia coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre homens e mulheres no casamento monogâmico, e a primeira opressão de classe coincide com a opressão do sexo feminino pelo masculino” (F. Engels A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado).

A propriedade privada também deu lugar às primeiras formas primitivas do estado enquanto um órgão de coerção que assegurava o domínio da minoria sobre a maioria despossuída, ao qual foi incorporado um conjunto de estruturas legais reforçando a posição subalterna das mulheres.

Atualmente, sabe-se muito mais sobre as sociedades primitivas do que na época de Engels, e reconhece-se que muitas das suas descrições dessas sociedades são erradas. O processo pelo qual a sociedade de classes foi formada foi muito mais desigual e complexo do que pensava Engels. Muitos dos detalhes de sua obra foram tomados de sociedades que não eram típicas. Apesar dessas debilidades, o ponto central de sua analise – de que a família e a opressão das mulheres eram produtos da sociedade de classes – permanece válido.

O objetivo de Engels era mostrar que a opressão sexual não era uma característica permanente e imutável da historia humana, mas havia se desenvolvido em resposta às mudanças na forma em que a sociedade estava organizada. O que os seres humanos haviam criado, os serem humanos podiam destruir. A opressão sexual poderia ser erradicada, mas somente mudando a organização da própria sociedade. A família está tão profundamente enraizada na sociedade de classes que ela só pode ser desarraigada pela destruição da sociedade de classes – pela vitória do socialismo.
Para entendermos como a família e a opressão feminina produziram a opressão gay é necessário que vejamos como a família transformou-se fundamentalmente sob o capitalismo. O capitalismo é, dentro todas as formas de sociedade de classes, a mais dinâmica e revolucionaria, uma sociedade que só pode progredir mudando e expandindo constantemente a sua base econômica. Como Marx e Engels escreveram em O Manifesto Comunista:

“A constante revolução da produção, a perturbação ininterrupta de todas as condições sociais, a incerteza e a agitação perpétuas distinguem a época burguesa de todas as anteriores. Todas as relações fixas, com o seu trem de preconceitos antigos e veneráveis, são varridas, todas as recém-formadas se tornam antiquadas antes que possam se ossificar.”

O que é verdadeiro para a sociedade como um todo também o é para a família. O processo inicial de industrialização destroçou a família operária tal como existia, destruindo a sua base como uma unidade de produção. Mulheres, homens e crianças, foram todos lançados nos novos moinhos e fábricas, não como membros de uma família, mas como trabalhadores igualmente “livres”. Ainda na década de 1840, a maioria dos trabalhadores das fábricas na Grã-Bretanha eram mulheres e crianças. As horríveis condições de vida e de trabalho que sofreram, destruíram qualquer aparência de uma vida familiar normal. E o acesso das mulheres a meios de sobrevivência independentes permitiu a muitas delas escaparem da necessidade de se casarem. Isso levou muitos, inclusive Marx e Engels, a prever a morte da família operária.

Na realidade, a família não só sobreviveu, mas floresceu – mas numa forma muito diferente. O capitalismo dependia de uma oferta ininterrupta de mão-de-obra, e aqueles que dirigiam o sistema passaram a ver cada vez mais a família como sendo o melhor meio de assegurar-lhes isso praticamente sem qualquer custo para eles próprios. A partir de meados do século XIX, houve tentativas conscientes de reconstruir uma vida familiar estável para as classes trabalhadoras. Em parte, isso implicou na gradual exclusão das mulheres e crianças de certas áreas de trabalho e no pagamento de um “salário-família” para alguns trabalhadores. As mulheres foram excluídas, em particular, daquelas industrias que colocavam em risco a sua capacidade de gerar filhos.

A família era necessária, em primeiro lugar, para reproduzir diariamente a capacidade dos trabalhadores para o trabalho – para alimentá-los, vesti-los e abrigá-los para que pudessem continuar a produzir mais-valia para os capitalistas. Mais importante, era também necessária como um meio para produzir futuras gerações de trabalhadores. Isso essência do núcleo familiar significava não só a produção física de crianças, mas também o seu treinamento social e ideológico, para produzir uma força de trabalho saudável, educada e submissão. Tal era o ideal da vida familiar.

Na prática, esse ideal quase nunca era realizado plenamente. Muitos capitalistas não pagavam um salário familiar adequado, e muitas mulheres continuavam a trabalhar em tempo integral ou parcial. Mas uma ampla gama de controles sociais, econômicos e ideológicos foram usados para impor a nova família à classe trabalhadora. Isso funcionou porque muitos trabalhadores, homens e mulheres, saudaram essa imposição. A família nuclear pareceu ser a única alternativa ao pesadelo de todos os membros da família trabalharem 12 horas por dia em troca de uma miséria e em condições brutalmente insalubres e perigosas.

Por fim, a família proporcionou aos seus membros a ilusão de terem um grau de controle sobre uma parte de suas vidas, um paraíso dentro de um mundo cruel. Contudo o restabelecimento da família nuclear assegurou a continuidade da opressão das mulheres.

A família tornou-se assim uma área de vida “privada” separada da esfera publica da produção, mas uma área ordenada e controlada pelo capitalismo. Na medida em que a família nuclear se tornou cada vez mais importante para o capitalismo, também tornou-se cada ver mais importante apresentá-la como sendo a única forma possível de via e assegurar que as divisões sexuais que isso acarretava fossem passadas às futuras gerações de trabalhadores. A família, em outras palavras, tornou-se um meio não só de controle social sobre os trabalhadores, mas também um controle ideológico.

São esses controles que são colocados em xeque pela simples existência de gays e lésbicas. A sexualidade gay desafia a idéia da família monogâmica como o único modo de vida possível – também desafia a idéia de que o sexo seja apenas para a reprodução. A sexualidade tornou-se não uma questão privada regulada pelas tradições e preconceitos da comunidade, como havia sido nas sociedades pré-capitalistas, mas um problema publico para o Estado regular e restringir.

Essa restrição tornou-se duplamente importante porque o desenvolvimento do capitalismo também criou as condições para formas muito mais amplas de expressão da sexualidade – pelo menos para uma minoria. A destruição das velhas comunidades de vilarejos, e com isso a quebra da fortaleza da Igreja, a possibilidade dos jovens escaparem da família pelo acesso ao trabalho assalariado e o anonimato das grandes cidades – tudo isso ajudou a criar as condições nas quais se tornou muito mais possível o desenvolvimento e o florescimento da sexualidade gay.

A resposta do Estado foi reprimir qualquer sexualidade “desviada” através de uma serie de leis repressivas e condenações judiciais exemplares designadas para forçar os gays e lésbicas a permanecerem nos porões da sociedade. A sociedade passou a definir o que era um comportamento sexual “normal”, ao mesmo tempo em que criou o “homossexual” como um tipo social. São sempre os opressores que definem os oprimidos, embora freqüentemente os oprimidos assumam os rótulos e símbolos de sua opressão como sinas de força e orgulho.

A opressão gay existiu em sociedades pré-capitalistas com um grau altamente variado de repressão e selvageria. Outras aceitaram o amor gay ao lado da heterossexualidade. Foi somente com o advento do capitalismo que a opressa gay tornou-se sistematizada como uma defesa necessária da família nuclear. Mas o capitalismo também criou possibilidades muito maiores do qualquer sociedade anterior para as pessoas realizarem e viverem suas sexualidades. Pela primeira vez na historia era possível lutar pela libertação gay.

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