quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Gays, Lésbicas e o Socialismo

Por Noel Hallifax


As paradas do “orgulho gay” vêm se consolidado como um evento político importante em todos os cantos do mundo. São manifestações que tiveram início há 30 anos, como atos de afirmação da sexualidade gay e lésbica, chamando a atenção para um tema que ainda é considerado tabu e tratado com desprezo e preconceito. Além das “Paradas do Orgulho Gay”, a realização de outros tipos de manifestação, a realização de campanhas tem sido importantes na luta contra a homofobia. Cada vez mais pessoas deixam de ver a homossexualidade como uma “aberração” ou “doença”, e leis que reconhecem a união entre pessoas do mesmo sexo têm se tornado cada vez mais comuns. Apesar disso, as conquistas ainda representam pouquíssimo diante dos graves problemas que gays, lésbicas, bissexuais e travestis enfrentam: expondo-se cotidianamente não só a atitudes preconceituosas, chacotas, perseguições e discriminação, mas à violência física e repressão policial.

Alguns problemas contribuem para esse avanço limitado. É interessante compararmos com outros movimentos, como o das mulheres, para que se tenha uma idéia mais clara. A luta pelos direitos das mulheres é antiga, e ao longo do tempo ela extrapolou os limites dos movimentos feministas, para se incorporar às lutas dos movimentos sociais e as plataformas de partidos políticos. Hoje em dia a maioria dos sindicatos possui comissões de mulheres, e muitas organizações, como a CUT, adotam o sistema de cotas para mulheres. E aqui não importa o juízo que se tenha sobre o sistema de cotas – o fundamental é o fato de que a luta das mulheres ganhou amplitude. Do mesmo modo, os debates e discussões sobre os problemas referentes Às mulheres e seus direitos, estão amplamente disseminados. É obvio que apesar disso essa luta está distante de ter alcançado ume estágio condizente com as suas necessidades. Mas, dentre os movimentos dos setores oprimidos, é o que se encontra em um grau mais avançado de organização, debate e mobilização. A situação dos movimentos contra a discriminação racial é bastante diferente. Embora nos últimos anos a questão racial venha conquistando um espaço cada vez maior na agenda política, a luta contra o racismo no Brasil ainda engatinha.

O grau de organização e luta dos gays, lésbicas e travestis é, infelizmente, baixíssimo. Os debates sobre a homofobia, os direitos dos gays e lésbicas ainda estão distantes dos movimentos sociais e das organizações da chamada “sociedade civil”. Pelo contrario, mesmo nesses setores, pode-se contatar a disseminação do preconceito e a subestimação dessa luta, a qual é tão importante quanto as lutas das mulheres, negros e outras vítimas de opressão.

Em grande medida, isso reflete a falta de compreensão do próprio problema da opressão. Em geral, há uma tendência a ver a de “atitude”, de “conscientização”, etc. Embora não se possa negar a importância das campanhas de esclarecimento, das ações judiciais movidas por vítimas de discriminação, dos lobbies organizados por entidades gays, a opressão não pode ser reduzida a um problema de “atitude”, de “idéias” ou comportamento. Da mesma forma que o machismo e o racismo, a opressão está enraizada em um sistema que necessita da opressão e a reproduz constantemente em suas variadas formas. E qualquer combate conseqüente contra a opressão precisa ser radical, isto é, necessita ir à raiz do problema.

A publicação deste caderno pretende ser uma contribuição a esse debate. Embora sua elaboração date de 1988, os seus argumentos são atuais e proporcionam elementos importantes para se compreender as bases materiais reais da opressão gay e para se discutir os caminhos possíveis para a sua superação. Está é, afinal, uma luta não só dos homossexuais, lésbicas, travestis e bissexuais, mas de todos nós que lutamos por uma sociedade igualitária e fraterna.

Qualquer pessoa que defenda a libertação gay enfrenta o velho clichê de que a homossexualidade é contrária à natureza humana. Essa crença em uma natureza humana estática, determinada pela nossa estrutura genética e os nossos instintos, é o mito mais popular utilizado para justificar a opressão sobre os homossexuais.

A primeira questão que deve ser enfrentada é a idéia de que lésbicas ou gays são “pervertidos”, “desviados”, “anormais”. Mesmo uma pesquisa superficial de diferentes sociedades mostra enormes variações no que é considerado “normal”. A sexualidade não é biologicamente definida, mas socialmente determinada. E a sua definição tem sofrido enormes mudanças através da história.

Muitas sociedades consideravam a homossexualidade “normal”. O exemplo mais conhecido é a Grécia Antiga. O amor entre os homens era idealizado na arte e na poesia grega. A mitologia grega está cheia de história de amor de gays e lésbicas. A história de Adônis e Narciso, por exemplo, fala de um deus que cai na luxúria e persegue belos jovens. O culto a Adônis dispunha de templos e festivais dedicados a celebrar e promover relações gays. Na sociedade grega um homem que se apaixonasse e tivesse relações sexuais com outro homem era visto como um ser perfeitamente normal.

Isso não deve levar-nos a crer que a sociedade grega era um paraíso sem opressão. Era uma sociedade baseada na escravidão, na qual a grande maioria da população era formada por escravos que eram propriedade de cidadãos livres. Os escravos não possuíam nenhum direito, eram criados como diferentes raças de animais para diferentes funções – escravos robustos para trabalhos pesados, outros para trabalhos domésticos, e assim por diante.

Além do mais, as mulheres possuíam um status tão baixo que os homens pensavam que era quase impossível para um homem e uma mulher terem uma relação amorosa de igual para igual – as mulheres serviam para cuidar da casa e das crianças, e o amor era destinado aos rapazes. Era uma sociedade extremamente opressiva. Na cidade estado de Esparta, o amor dentre jovens e homens era um aspecto permanente e importante em seu exército. Um guerreiro treinava um jovem na arte da guerra, num aprendizado longo e árduo. A relação entre o guerreiro e o seu aprendiz era próxima e vital, e sua importância era tão grande que os planos de batalha do exercito espartano eram feitos com base nessa relação.

A casta guerreira do Japão feudal – os samurais – nutria idéias semelhantes às dos espartanos, refletidas em poemas e historias de amor homossexual.

Assim, não há nada de pervertido no amor gay. A sua existência pode ser constatada em quase todas as sociedades, mesmo naquelas que o proíbem veementemente. O amor entre pessoas do mesmo sexo é um aspecto comum da sexualidade humana. O que precisa ser explicado é porque em algumas sociedades esse amor é vítima de opressão.